09/09/2025

A Trajetória da Educação Inclusiva no Brasil: Arcabouço Legal e Conceitual

RESUMO. Objetivo: Analisar os marcos legais e os processos históricos que moldaram a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva no Brasil. Este artigo contextualiza a transição paradigmática do modelo de segregação, passando pela integração, até o atual modelo de inclusão. Métodos: A pesquisa foi conduzida por meio de uma revisão narrativa e análise documental da legislação pertinente, partindo das primeiras Leis de Diretrizes e Bases até a Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Resultados: A análise demonstrou como a evolução normativa foi crucial para a redefinição de conceitos fundamentais como deficiência e capacidade civil, e para a estruturação de serviços de apoio essenciais, como o Atendimento Educacional Especializado (AEE). A investigação identificou que, apesar do robusto arcabouço legal, o capacitismo persiste como uma significativa barreira atitudinal a ser superada. Conclusão: A legislação se mostra uma ferramenta indispensável para combater o capacitismo e efetivar o direito a uma educação e sociedade justas. A sua aplicação rigorosa é fundamental para transformar o ideal da inclusão em realidade, garantindo que a remoção de barreiras seja uma responsabilidade coletiva.

INTRODUÇÃO

 

A abordagem dispensada às pessoas com deficiência no Brasil é o reflexo de uma profunda transformação paradigmática, visível diretamente na evolução de sua legislação. O percurso histórico pode ser compreendido em três grandes períodos. Inicialmente, vigorou o Período de Segregação e Assistencialismo (até meados do século XX), caracterizado pela institucionalização em hospitais ou asilos. A educação, quando ofertada, ocorria em locais isolados com foco assistencialista, sob a ótica do modelo médico-biológico, que tratava a deficiência como um problema individual.

Posteriormente, o Período de Integração (décadas de 1970 e 1980) representou um movimento para "integrar" alunos com deficiência em classes comuns. Contudo, a responsabilidade pela adaptação recaía sobre o aluno, e não sobre a escola, mantendo o foco no "déficit" do estudante, o que resultava em uma integração frequentemente seletiva.

Finalmente, a partir da década de 1990, influenciado por marcos internacionais como a Declaração de Salamanca (1994), emerge o Período da Inclusão. Este novo paradigma propõe que a escola se reorganize para acolher a diversidade de todos os alunos, deslocando o foco para a eliminação de barreiras (arquitetônicas, pedagógicas e atitudinais). A distinção é fundamental: na integração, o aluno se adapta à escola; na inclusão, a escola se adapta ao aluno.

 

DESENVOLVIMENTO

O arcabouço legal brasileiro que garante os direitos das pessoas com deficiência é robusto e evolutivo. O Quadro 1 relaciona as principais normas, seu status de vigência e as respectivas alterações ou revogações.

Quadro 1. Status da Legislação Pertinente.

Legislação

Status

Observações / Revogada por

Lei nº 4.024/1961 (Primeira LDB)

Revogada

Substituída por legislações posteriores, notadamente a Lei nº 9.394/96.

Lei nº 5.692/1971 (LDB da Reforma)

Revogada

Substituída pela Lei nº 9.394/96.

Constituição Federal de 1988

Vigente

Garante a educação como direito de todos e o atendimento especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.

Lei nº 7.853/1989

Vigente

Dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência e a atuação do Ministério Público na defesa de seus interesses.

Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA)

Vigente

Assegura o direito à educação visando o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente com deficiência.

Política Nacional de Educação Especial (1994)

Obsoleta

Suplantada pela PNEEPEI de 2008, que reorientou a política para uma perspectiva inclusiva.

Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB)

Vigente

Define a Educação Especial como modalidade transversal, preferencialmente na rede regular. Artigos 58 a 60 são a base legal.

Decreto nº 3.298/1999

Parcialmente Vigente

Regulamentou a Lei nº 7.853/89, mas teve diversos artigos revogados por decretos posteriores.

Resolução CNE/CEB nº 2/2001

Vigente

Institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.

Lei nº 10.436/2002 e Decreto nº 5.626/2005

Vigentes

Reconhecem a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão e regulamentam sua inclusão.

Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI - 2008)

Vigente

Documento norteador que representa um "divisor de águas" , focando na inclusão em classes comuns e no AEE.

Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006)

Vigente

Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional pelo Decreto nº 6.949/2009, reforça o direito à educação inclusiva.

Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão - LBI / Estatuto da Pessoa com Deficiência)

Vigente

Considerada o principal marco legal, consolida direitos e promove a inclusão social e a cidadania.

Fonte: elaborado pelo autor, 2025

A análise detalhada dos objetivos e dos pontos mais relevantes de cada documento revela a progressiva consolidação de direitos, conforme demonstrado no Quadro 2.

Legislação

Objetivos

Pontos Importantes

Constituição Federal (1988)

Assegurar a educação como direito fundamental de todos.

Estabelece que o atendimento educacional especializado (AEE) a pessoas com deficiência deve ser ofertado "preferencialmente na rede regular de ensino".

LDB (Lei nº 9.394/96)

Estruturar a educação nacional.

Define a Educação Especial como modalidade de ensino que perpassa todos os níveis e etapas. Garante currículos, métodos e recursos específicos , além de professores especializados.

PNEEPEI (2008)

Nortear a inclusão no Brasil, definindo diretrizes para a educação especial na perspectiva inclusiva.

Orienta a matrícula de todos os alunos público-alvo da educação especial em classes comuns do ensino regular. Consolida o Atendimento Educacional Especializado (AEE) como um serviço complementar ou suplementar, realizado em Salas de Recursos Multifuncionais, no contraturno escolar.

Convenção da ONU (2006)

Promover, proteger e assegurar o pleno exercício de todos os direitos humanos por todas as pessoas com deficiência.

Possui status de emenda constitucional no Brasil. Reforça o direito a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis.

Lei Brasileira de Inclusão (LBI - 2015)

Assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício de direitos e liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, visando sua inclusão social e cidadania.

Adota o modelo social da deficiência, que a entende como resultado da interação da pessoa com as barreiras do ambiente. Garante um sistema educacional inclusivo, proibindo a cobrança de valores adicionais por escolas privadas. Redefine a capacidade civil, estabelecendo a capacidade plena como regra e a curatela como medida excepcional. Garante direitos à acessibilidade, trabalho, saúde, transporte, entre outros. Tipifica crimes de discriminação.

Fonte: elaborado pelo autor, 2025

A análise da legislação ensina que a garantia de direitos para pessoas com deficiência é um processo contínuo de desconstrução de preconceitos. A transição do modelo médico-biológico para o modelo social da deficiência, consolidada pela Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015), é a principal lição. Aprendemos que a deficiência não é uma limitação inerente ao indivíduo, mas o resultado da interação entre essa pessoa e as barreiras impostas por um ambiente hostil à diversidade. A legislação atua como uma poderosa ferramenta de combate ao capacitismo — a discriminação baseada na premissa de que pessoas com deficiência são inferiores. Ela exerce essa função de duas maneiras principais: primeiro, de forma pedagógica e simbólica, ao positivar direitos e promover uma mudança na percepção social, ensinando que a remoção de barreiras é uma responsabilidade coletiva. Segundo, de forma coercitiva e punitiva, pois a LBI tipifica como crime a discriminação em razão da deficiência (Art. 88), com pena de reclusão (Brasil, 2015). Ao estabelecer penalidades, o Estado sinaliza que atitudes capacitistas são condutas ilegais que violam direitos fundamentais.

 

CONCLUSÃO

Uma legislação bem estruturada é o alicerce para a garantia dos direitos da pessoa com deficiência. Ela confere legitimidade às suas demandas, estabelece obrigações claras para o Estado e a sociedade, e oferece os instrumentos jurídicos para a exigibilidade desses direitos. Sem um marco legal robusto, a inclusão fica à mercê da discricionariedade e do assistencialismo, perpetuando um ciclo de exclusão. A Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015) é o ápice desse processo evolutivo no Brasil, consolidando um arcabouço legal que não apenas unifica e amplia direitos, mas redefine conceitos essenciais como o de deficiência e capacidade civil. A legislação estabelece a escola comum como espaço prioritário para todos, amparada pelo AEE, e impõe o dever da acessibilidade.

Contudo, a existência da lei, por si só, não garante sua plena efetivação. O maior desafio reside na superação das barreiras atitudinais, cristalizadas no capacitismo. Portanto, a legislação deve ser vista não como um ponto de chegada, mas como um instrumento contínuo de transformação social, cuja aplicação rigorosa e fiscalização são essenciais para que a inclusão deixe de ser um ideal para se tornar uma realidade.

REFERÊNCIAS

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Brasil. (1996). Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

Brasil. (2015). Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. (2024). Módulo I - Núcleo de estudos de formação geral I. Material de Estudo do curso da Rede Nacional de Formação de Profissionais da Educação (RENAFOR).

Ministério da Educação. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Secretaria de Educação Especial.

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