22/05/2017

A QUINTA FILOSOFIA: UMA PONTE ENTRE O HOMÉRICO JESUS HISTÓRICO DE REZA ASLAN E O CAMPONÊS DE NAZARÉ

Adilson Cristiano Habowski, discente do curso de Teologia pela Universidade La Salle – Canoas. Email: adilsonhabowski@hotmail.com

 

Lucas Luiz Abreu Rocha, discente do curso de Psicologia da UNIRITTTER LEUREATE INTERNATIONA UNIVERSITIES, Porto Alegre/RS. E-mail: rocha.lluiz@hotmail.com.

 

Vinícius Barbosa Cannavô, graduado em Teologia pela Universidade La Salle – Canoas/RS. E-mail: vinicius.cannavo@lasalle.org.br

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré, traduzido por Marlene Suano é uma obra do escritor, doutor e especialista em temas religiosos, Reza Aslan. A obra, logo após sua publicação em 2013, é aclamada como o best-seller nº1 do New York Times. Conhecedor e estudioso do Novo Testamento, grego bíblico, história, sociologia e teologia das religiões, Aslan dedicou-se durante duas décadas ao estudo do Jesus histórico e expõe de forma inexorável e com um rigor de seriedade desprovido de qualquer insinuação, as conclusões de seu estudo. Nas palavras de Aslan (in La Repubblica, em 03/12/2013)

 

Eu queria separar a sua realidade histórica [de Jesus] do mito religioso, que é posterior. Eu queria explicar como um agricultor pobre e analfabeto conseguiu fundar um movimento revolucionário em defesa dos deserdados e dos marginalizados, chegando a desafiar de maneira direta o poder romano e das hierarquias judaicas. Interessava-me imergir Cristo na sua época, ver as suas ações relacionadas com os eventos daquele período: ações e reações [...] eu queria contar o homem, não Deus.

 

A filosofia à qual o camponês de Nazaré bebeu, deve-se, antes de qualquer lugar, procurá-la do manancial de seu primeiro e maior mestre, não ignorando o fato de que conforme as narrativas encontradas nos evangelhos, o percurso do Nazareno iniciou após o tempo de deserto com o seu mestre: João Batista. Destarte, nas palavras que Lucas coloca na boca de Jesus: “o discípulo não é mais que o mestre; embora, uma vez instruído, venha a ser como o mestre” (Lc 6,40), mais do que de uma quarta filosofia, deve-se considerar o que o nazareno aprendeu com a silenciosa e originalíssima voz que clamava no deserto, procurando reconhecer – mais do que uma zelosa forma nacionalista, uma peculiar Quinta Filosofia que daria vida ao movimento que emanaria da figura de um simples camponês de Nazaré.

Para este trabalho hermenêutico da quinta filosofia enquanto ponte entre o homérico Jesus histórico de Reza Aslan com o camponês de Nazaré, adotamos como fio condutor para a análise dos textos a abordagem hermenêutica, que é voltada para a compreensão e a interpretação de discursos, textos e os diversos modos de criação humana. Enquanto escuta da linguagem, a hermenêutica é a própria fusão de horizontes onde as tradições culturais e interpretativas acontecem e se escutam mutuamente, satisfazendo as exigências contemporâneas que move para a alteridade. Segundo Habermas (1994, p. 351), “o esforço hermenêutico almeja a apropriação de sentido, presente em cada momento uma voz silenciada que deve ser novamente despertada para a vida”. Nesse contexto, a linguagem torna-se base para a construção do conhecimento, uma vez que os debates construtivos necessitam de uma atitude hermenêutica, já que exige um trabalho interpretativo que parte dos contextos fornecidos pelos textos. A atitude hermenêutica é uma perspectiva dialógica que garante a interpretação, compreensão e fusão de diferentes visões de mundo como questões inspiradoras para avançar no diálogo com as diversas perspectivas.

 

2 JESUS E O CONTEXTO SÓCIO-POLÍTICO DE NAZARÉ

 

Ao afirmar que “fora do Novo Testamento, simplesmente não há nenhum traço de evidências a respeito de Jesus que seja do século I EC” (ASLAN, Folha de São Paulo, em 24/11/2013), Reza sustenta sua tese ao tomar o pouco do que se sabe sobre o Jesus proveniente dos relatos bíblicos e colocar dentro do contexto sócio-político da época em que viveu o nazareno. O que se obtém – conforme o pensamento do autor, é um camponês-judeu-revolucionário e politicamente conscientizado que – com um programa político que fomentava a vinda do Reino de Deus e envolvia a expulsão dos romanos da Palestina para a recriação da gloriosa monarquia israelita com o próprio Jesus no trono, dá início a um movimento destinado aos judeus da Palestina interpelados por suas expectativas apocalípticas.

 

No final, há apenas dois fatos históricos efetivos sobre Jesus de Nazaré nos quais podemos realmente confiar: o primeiro é que Jesus foi um judeu que liderou um movimento popular judaico na Palestina no início do século I d.C.; o segundo é que Roma o crucificou por isso. [...] Este livro é uma tentativa de recuperar, tanto quanto possível, o Jesus da história, o Jesus antes do cristianismo: o revolucionário judeu politicamente consciente que, há 2 mil anos atrás, atravessou o campo galileu reunindo seguidores para um movimento messiânico com o objetivo de estabelecer o Reino de Deus, mas cuja missão fracassou quando – depois de uma entrada provocadora em Jerusalém e um audacioso ataque ao Templo – ele foi preso e executado por Roma pelo crime de sedição (ASLAN, 2013, p. 20-23).

 

            Esta imagem do Jesus nacionalista judeu revolucionário, de acordo com o autor, se perdeu na narrativa dos evangelistas pelo fato de que os romanos transformaram-se no principal alvo do evangelismo da Igreja que, no cuidado para não transpassar uma ideia de manifesto no hostil território romano, transformaram Jesus de Nazaré “em um líder espiritual pacífico, sem nenhum interesse em qualquer assunto terreno” (ASLAN,2013,p. 22-23). Este era o único Jesus que os romanos poderiam aceitar, tal como se fez três séculos mais tarde quando Teodósio fez do movimento do pregador judeu itinerante a religião oficial do Estado romano.

            Diante disso, no anseio de encontrar o Jesus histórico colocando-o em seu contexto geográfico-político-social, o livro inicia, pedagogicamente, contextualizando a vida no Templo a tomar como base a Jerusalém prestes a entrar em guerra que ocasionaria a derrocada da cidade diante do Império de Roma – que se efetivaria definitivamente com a invasão romana nas mediações territoriais, destruição do Templo e a grande diáspora judaica no ano de 70 EC. O que prefigura tal evento é a somatória de uma sucessão de fatos que se projetam desde o corrupto cenário sacerdotal hereditário do Templo – que se encontra em uma maculada relação de subordinação direta às forças do império, e culmina ao personificar-se nas aspirações de movimentos nacionalistas promanados desse contexto diante das principais instâncias de poder da Judéia: Templo e Estado.

Combinado a essas circunstâncias, o sacrifício do sumo-sacerdote Jônatas (56EC) pelo movimento nacionalista incitado e cognominado pelos sicários, demarca o princípio do que em poucos anos desencadearia na revolta judaica e, consequentemente, destruição de Jerusalém. “A guerra contra Roma não começa com o som estridente das espadas, mas com o ruído suave do cabo de um punhal sendo tirado da capa de um assassino” (ASLAN, 2013, p.29).

Em razão das buscas do Jesus histórico, Aslan discorre que Jesus não era Cristão e sim um Judeu, procurando fazer um estudo a partir da contextualização judaica da época, pois os cristãos apresentavam Jesus como o Cristo. Entretanto, quem era realmente o Jesus judeu? Com a finalidade de responder essa pergunta, Aslan em uma abrangente pesquisa compilou o livro Zelota, mostrando que Jesus foi um nazareno revolucionário de sua época com a perspectiva de mostrar que a história do Jesus histórico é muito mais incrível do que aquela que costumeiramente caracterizamos. “Na verdade, o Jesus que emerge desse exercício histórico – um revolucionário fervoroso arrebatado, como todos os judeus da época o foram, pela agitação política e religiosa da Palestina do século I – tem pouca semelhança com a imagem do manso pastor cultivado pela comunidade cristã primitiva” (ASLAN, 2013, p. 21).

            Desta forma, Jesus é apresentado como pregador andarilho que se fez presente em meio aos oprimidos e marginalizados anunciando o Reino. Entretanto, Aslan nos reforça que o século I foi um período de muita expectativa apocalíptica de tal modo que havia inúmeros profetas que isso pregavam, porém, ao declarar-se profeta e anunciador em meio ao Povo, corria-se o risco de ser executado pelas autoridades romanas. Mas Jesus com sua pregação, não abre a possibilidade de ser enquadrado em um determinado movimento, pois sua mensagem era muito mais abrangente.   

Aslan nos assegura historicamente que “Jesus foi um judeu que liderou um movimento popular judaico na Palestina no século I d.C. (...) e que Roma o crucificou (ASLAN, 2013, p. 20). De fato, Jesus não se absteve de questionar as injustiças que enxergava, de modo a exigir direitos mínimos aos mais marginalizados. Na sua vida, um setor na qual Jesus tanto lutou foi o Templo, pois aí aconteciam sacrifícios de modo a organizar todo o modo de vida em torno dele, porque desde os animais até as moedas ali depositadas deveriam ser puras (as melhores), segundo os sacerdotes (com uma alta posição hierárquica) isto determinavam.  Nas oferendas e sacrifícios, “a carne do animal é cuidadosamente retirada e colocada de lado para os sacerdotes se banquetearem após a cerimônia” (ASLAN, 2013, p. 32), ou seja, ao ser obrigação de todo o povo judeu prestar sacrifícios no Templo, independentemente de suas condições financeiras, acabavam oferecendo tudo o que tinham em prol do conforto de poucos. Tudo isso causava muita inquietação em Jesus, pois queria uma mudança radical nesse contexto.  

            Jesus provavelmente é proveniente da Galileia (Nazaré), de uma aldeia de camponeses com aproximadamente 100 pessoas em que a sua maioria eram analfabetos, agricultores e diaristas, ou ainda, sobreviviam com empregos. Aslan afirma que “não importa a profissão ou habilidade, cada nazareno é um agricultor” (ASLAN, 2013, p. 51). Essa ideia também é defendida por Pagola, que afrima, “a Galileia era uma sociedade agraria. Os contemporâneos de Jesus viviam do campo” (PAGOLA, 2013, p. 40). Se Jesus cresceu em um meio de partilha de autossuficiência, a dependência para com o governo Romano e a exploração advinda tanto do âmbito religioso quanto político, sem dúvida, isso lhe causara extrema perturbação.

            Jesus, ao começar a pregar em sua vida pública, é reconhecido como Filho de Deus, mesmo que diversas vezes pedira que se mantivesse sua identidade em segredo. Isso é compreensível, pois no contexto que Jesus fazia parte, ser Filho de Deus dava-se uma concepção restauradora, ou mesmo, aquele que aniquilaria o mundo presente. Em síntese, aquele que veio para findar com todo o contemporâneo e instituir novos tempos. Os judeus consideravam-se filhos de Deus e isso preocupou a posição de muitas autoridades, pois ninguém poderia ir contra as ordens romanas.  

             Na Galileia havia pouco trabalho para um carpinteiro, um tekton (do grego carpinteiro) fazer, principalmente em Nazaré. Aslan (ASLAN, 2013, p. 60) assegura que Jesus não teve condições para ter formação e educação necessárias, pois o único ensinamento que teve foi aprender o ofício do pai, a carpintaria. Pai esse que Aslan afirma que “José nunca existiu, que ele era uma criação de Mateus e Lucas” (ASLAN, 2013, p. 61). Como também o fato da virgindade de Maria, para fugir da ideia de Jesus ter nascido fora do casamento. Desta forma, em ambas as colocações podemos perceber que ao longo das tradições cristãs criaram-se muitas concepções favoráveis a Jesus, desde a sua infância até a sua ressurreição, de modo a não vê-lo como alguém comum em meio ao povo, alguém que lutava por mudanças, mas um ser pacifista que peregrinava em meio a todos, ou ainda, um ser que não veio de nosso meio, mas dos céus.

            Torna-se difícil criarmos a imagem de um Jesus realmente humano e histórico tendo por base a tradição cristã e os escritos bíblicos neotestamentários, pois estes mesmos afirmam e atestam que Jesus jamais casou. Entretanto, Aslan garante que era inimaginável no contexto de Jesus, um homem aos seus trinta anos não ser casado, até porque na mentalidade judaica a graça da vida dava-se na sua descendência, ou seja, a alegria de um varão era o número de filhos que possuía: “teria sido quase impensável para um homem judeu de trinta anos de idade, no tempo de Jesus, não ter esposa. O celibato era um fenômeno extremamente raro na Palestina do século I” (ASLAN, 2013, p. 62). Em contrapartida ao pensamento de Aslan, Pagola nos assegura que “se Jesus não convive com uma mulher não é porque despreze o sexo ou desvalorize a família. É porque não se casa com nada nem com ninguém que possa distraí-lo de sua missão a serviço do reino” (PAGOLA, 2013, p. 84).

            No período de transição do governo de Herodes para seus filhos, surgiu um grupo de bandidos judeus, que buscavam uma revolução do contexto ao qual viviam, e o líder desse grupo era Judas, o Galileu. Judas, pós a morte de Herodes instituiu a quarta filosofia, a outra além as três existentes (fariseus, essênios e saduceus), de modo o seu principal aspecto era sua crença, o ‘Zelo’ a ‘Torá’ a ‘Lei’. Aslan salienta que este grupo não são os mesmos que surgiram no ano 66 d.C., na guerra judaica, entretanto esse grupo, ou melhor essa quarta filosofia fez parte do pensamento de Jesus, de modo que a mesma crença deles em relação ao Reino era semelhante a de Jesus,  “o Reino de Deus estava próximo. Todos falavam sobre isso. Mas esse Reino só poderia ser anunciado pelos que tivessem zelo de lutar por ele.” (ASLAN, 2013, p. 66).  

Em relação ao que Jesus pregou, Aslan diz que “(...) veio para libertar Israel da escravidão” (ASLAN, 2013, p. 98) enquanto Pagola afirma que “a mensagem de Jesus impressionou desde o princípio. (...) era o que eles queriam ouvir: Deus se preocupa com eles” (PAGOLA, 2013, p. 124).  Em relação ao contexto que Jesus suscita, é muito mais fácil entendermos que ele foi um revolucionário, que buscou mudanças sociais, e não um pregador utópico, que disseminava somente esperanças, mas o que ele poderia ser realizado para mudar isso. Nesse espírito Jesus entra no Templo e busca limpá-lo, causa confusão, perturba as autoridades que se encontravam em estado de privilégios à custa dos pobres e marginalizados, de modo que como Aslan diz que o fato do Templo já seria motivo de crucificação, pois perturbava a pax romana. Sobre essas atitudes em relação ao Templo, é perceptível “(...) a forma como são flagrante e inescapavelmente zelosas as ações de Jesus no Templo” (ASLAM, 2013, p. 98).

Uma figura que muito influenciou a vida de Jesus, a ponto de contribuir na sua mentalidade revolucionária foi João Batista, que segundo Aslan, possuía uma mensagem simples: que o fim estava chegando. Mensagem que faz recordar o anúncio e pregação de Jesus (Mc 1,15): O Reino de Deus está próximo. Mesmo havendo o problema para os primeiros cristãos em relação a comprovação da superioridade de Jesus em relação ao Batista, em grande probabilidade Jesus iniciou toda sua pregação itinerante sendo como mero discípulo e seguidor de João Batista, de modo a ir fazer a mesma experiência que o Batista no deserto, e assim recolher e aprender dele todo o ardor revolucionário possível.

            Após a morte do Batista, Jesus não extinguiu seu ardor de mudança, mas o intensificou, de modo a começar a pregar o Reino e sua chegada, entretanto com um diferencial, “(...) Jesus não simplesmente imitava João. Sua mensagem seria muito mais revolucionária, sua concepção do Reino de Deus muito mais radical (...)” (ASLAN, 2013, p. 113), de modo que “Jesus reage de maneira surpreendente. Não abandona a esperança que animava o Batista, mas a radicaliza até extremos insuspeitados” (PAGOLA, 2013, p. 103), abandona o batismo com água, e inicia o batismo com o “Espírito Santo e o fogo” (ASLAN, 2013, p. 113).

            Ao retornar a Galileia, Jesus percebeu que não era a mesma que ele conhecia em tempos idos, mas seria aquele que ele disseminaria sua mensagem, que nada mais foi estruturada e pensada para tornar-se um desafio para os ricos e poderosos (ASLAN, 2013, p. 119), de modo que chegou a hora dos marginalizados e oprimidos, pois o Deus de Israel ouviu os clamores dos que sofrem e veio socorrê-los.  Mas para isso Jesus chamou discípulos e apóstolos, em especial 12 aos quais confiou diretamente a missão de pregar radicalmente o Reino que estava por vir.

            Assim iniciou sua pregação revolucionária repercutindo em diversas dimensões sua mensagem, desde as sinagogas até as multidões, de modo que sua maior luta, não foi com o Império Romano, mas com as autoridades judaicas que tornavam o Templo impuro, e isso é uma legítima característica de ‘zelo’. “Tal como seus antecessores zelosos, Jesus estava menos preocupado com o império pagão ocupando a Palestina do que com o impostor judaico ocupando o Templo de Deus” (ASLAN, 2013, p. 123). Na sua mensagem de desprezo pela classe vigente no templo, basta observar a parábola do Bom Samaritano, conforme Aslan, pois realmente Jesus mostra o quanto desprezíveis os sacerdotes são para com o povo, pois nem a capacidade de auxílio ao próximo possuíam.

Na pregação muitos o viam como um exorcista, ou um milagreiro que prestava serviços gratuitos, mas como Aslan alerta, “(...) não há nenhuma evidência que comprove qualquer ação milagrosa específica de Jesus” (ASLAN, 2013, p. 127). De forma sensata opta-se no que Aslan propõe, que as tradições cristãs futuras, com o intuito de exaltar mais o Cristo do que o Jesus, ‘enfeitaram’, acrescentaram algumas peculiaridades nas atitudes de Jesus a ponto delas tornaram-se curas e exorcismos. Então quando todos ficavam admirados com seus “milagres e exorcismos”, no fundo não era com isso que estavam intrigados, mas com a  sua mensagem revolucionária, porém “simples” (ASLAN, 2013, p. 136), ou seja, o seu anúncio de que o Reino estava próximo, amedrontava, pois a sua pregação itinerante deixava muito inquietos.

Para Pagola Jesus pregava o reino, pois, “todos precisavam saber que Deus é o defensor dos pobres; estes são seus preferidos. Se seu reinado for acolhido, tudo mudará para o bem dos últimos” (PAGOLA, 2013, p. 131) e já para Aslan “’dizer que o Reino de Deus está próximo’, portanto, é o mesmo que dizer que o fim do Império Romano está próximo” (ASLAN, 2013, p.141), assim entre ambos os autores é perceptível visões diferentes, mas complementares, de modo que em ambas reconhece-se o ardor de mudança e de revolução que Jesus busca provocar no meio em que vive.

             Infelizmente, ao longo dos tempos (no pós-guerra judaica e na destruição de Jerusalém) a visão cristã preferiu abster-se de pregar um Jesus revolucionário (principalmente as primeiras comunidades cristãs), a ponto dessa imagem tornar-se ofuscada hoje. Isso ocorreu, conforme Aslan, porque “tentaram desesperadamente distanciar o Jesus do nacionalismo Zelota que provocou a ocorrência da terrível guerra” (ASLAN, 2013, p. 142). No período de escrita dos evangelhos, pós a Guerra Judaica, o principal foco de evangelização foram os gentios, a sociedade romana, de modo que segundo Aslan, os evangelistas e todos que buscaram pregar a mensagem de Jesus, a “adaptou” a realidade a qual pregava, ou seja, amenizou em grande instancia a culpa dos Romanos em relação a morte de Jesus e a deslocou totalmente sobre os Judeus, pois se isso não fizessem, jamais teriam conseguido alcançar tamanha pregação do “Bom Pastor”.

            O primeiro mártir pelo “Messias”, pelo pastor, foi Estevão no ano entre 33 e 35 d.C., entretanto sem conhecê-lo. Mas no seu martírio encontrava-se alguém chamado Saulo, o qual Aslan o denomina de “(...) um verdadeiro Zelota: um seguidor fervoroso da lei de Moisés” (ASLAN, 2013, p. 187). Todavia esse fariseu dizendo-se convertido passou a chamar-se de Paulo, que sem conhecer o verdadeiro Jesus, passou a pregar a todos que via pela frente, principalmente “gentios” que o Jesus era o Cristo, o Messias enviado por Deus. Assim, a mensagem que hoje temos é paulina, mas este jamais teve contato com o Jesus de Nazaré, a não ser com aquele que ele denomina de Cristo, ao qual ele diz que foi o motivo de sua conversão.             

            Em diversos aspectos, como também na concepção da ressurreição de Jesus, a qual Paulo tanto afirma ser real, Pagola nos assegura que “[ressurreição] esta “notícia” não é uma invenção de Paulo. É um ensinamento que ele mesmo recebeu e que agora está transmitindo fielmente junto com outros pregadores” (PAGOLA, 2013, p. 492). Assim percebe-se que o autor (Pagola) não possui também a visão do Jesus que propôs uma revolução, de um Jesus zelota, mas de um Cristo, ao qual Paulo construiu, mas que o próprio Aslan afirma que é um tema difícil para um historiador descobrir e debater, pois sai do âmbito histórico.   

Dentro dessa agitação, a insignificante província do Império Romano, que desde a construção do Templo de Salomão tem como referência Jerusalém, apresenta um histórico de embates que marca profundamente sua história. Desde a tomada pela Babilônia em 586AEC, passando pela dominação do império persa e logo em seguida submetida ao jugo de Alexandre, emerge em 63EC, após o período de controle autônomo ocasionado pela revolta dos Macabeus, mais uma vez, como um povo dominado diante do general Pompeu. Não obstante a história desse pequeno ponto em confronto com as grandes potências imperiais dos séculos, o que caracterizava o povo da Judeia – mais do que seu histórico de embates, revoltas e vassalagem, é o fervor religioso que acomete a população judaica.

 

Davi tinha remodelado a sede do seu reino, a cidade que ele tinha legado a seu filho rebelde, Salomão, que construiu o Templo de Deus – saqueado e destruído pelos babilônios em 586 a.C. –, a cidade que tinha sido a capital religiosa, econômica e política da nação judaica por mil anos era, no momento em que Pompeu atravessou os portões, reconhecida  menos por sua beleza e grandiosidade do que pelo fervor religioso de sua incômoda população (ASLAN, 2013, p.36).

 

Diante desse tumultuado desenvolvimento da Judeia, com disputas não só dentro de seus territórios, mas também entre poderes reais e figuras hegemônicas, de acordo com Aslan, a sede eterna do Povo de Deus representava ao império romano – no alvorecer do século I EC, apenas uma província diminuta e incômoda situada no canto mais distante do hegemônico Império.

Além de situar a influência e o histórico da Palestina do século I, algo fundamental para compreender a atuação e intencionalidades do Jesus apresentado por Reza Aslan é situá-lo em consonância com movimentos de caráter apocalípticos contemporâneos ao período de vida e localização do nazareno. Assim, emergem dentro das províncias romanas situadas em território palestino figuras emblemáticas liderando movimentos de expectativas apocalípticas que colocam em xeque o poder vigente, especialmente as autoridades imperiais. Tais incitadores passam a ser vistos sob a ótica romana como subversores perigosos à ordem vigorante, o que os leva a ser caracterizados pelo poder do império como “lestai”, isto é, “bandidos” [1].

 

“Bandido” era um termo genérico para qualquer rebelde ou sublevado que emprega a violência armada contra Roma ou contra os colaboradores judeus. Para os romanos, a palavra “bandido” era sinônimo de “ladrão” ou “agitador”. [...] Os bandidos alegavam ser agentes da vingança de Deus. Eles vestiam seus líderes com emblemas dos reis e heróis bíblicos e apresentavam suas ações como um prelúdio para a restauração do Reino de Deus na Terra. Os bandidos aproveitavam-se da generalizada expectativa apocalíptica que tinha tomado os judeus da Palestina depois da invasão romana (ASLAN, 2013, p.44-45).

 

Presume-se, assim, que assumir o posto que ocupava o perdulário e tirano Herodes no período antecedente e posterior ao nascimento de Jesus não era tarefa invejável, em vista que, de acordo com Flávio Josefo, existiam pelo menos 24 seitas judaicas rebeldes em Jerusalém e seus arredores, das quais destacavam-se os pensamentos emergentes das filosofias sectárias dos fariseus[2], saduceus[3] e essênios[4]. Sem sombra de dúvidas, impor ordem e disciplina sob um leque tão heterogêneo de vertentes ideológicas dentro dessa população não era tarefa fácil ao prefeito encarregado por Roma para pacificar e administrar Jerusalém.

Ao tomar conhecimento do amplo contexto do território da Judeia, para compreender mais a fundo a figura e desenvolvimento do profeta de Nazaré, faz-se necessária, também, uma contextualização do lugarejo onde ele provavelmente nasceu e viveu antes de assumir sua vida de pregador revolucionário itinerante. De acordo com José Antonio Pagola:

 

Nazaré era um pequeno povoado nas montanhas da Baixa Galileia [...] o povoado ficava retirado no meio de uma bela paisagem rodeada de morros. Nas encostas mais ensolaradas, situadas ao sul, encontravam-se disseminadas as casas da aldeia[5] [...] Nazaré era uma aldeia pequena e desconhecida, de apenas duzentos a quatrocentos habitantes. Nunca aparece mencionada nos livros sagrados do povo judeu, nem sequer na lista de povoados da tribo de Zabulon (PAGOLA, 2013, p.62-63).


 

Nazaré “é, em suma, um lugar irrelevante e totalmente esquecível” (ASLAN, 2013, p.52). No seio de uma família humilde e judia, rodeado por camponeses cuja vida era erigida sob o imperativo da “autossuficiência”, é onde se situa o contexto em que cresce o profeta que “foi conhecido durante toda a sua vida como o nazareno” (ASLAN, 2013, p.52; cf. PAGOLA,2013,p.63). Indubitavelmente, a vivência dentro dessa conjuntura influenciou profundamente a vida de Jesus, afinal, não se pode tirar o homem de dentro da sua história. Assistir ao sofrimento dessa camada excluída de camponeses com certeza serviu como base para o seu discurso ideológico de inversão de polaridades proposta pelo nazareno, onde os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos (cf. Mt 5,3. 20,16; Lc13,30).

 

3 JESUS COMO ZELOSO E REVOLUCIONÁRIO

 

Contudo, não se pode afirmar o quanto o fator do crescimento em Nazaré tenha influenciado o profeta do Reino de Deus, ou melhor, não se pode assegurar nada do que tenha acontecido na vida de Jesus antes do início de sua trajetória itinerante, pois “antes de Jesus ser declarado messias, não importava que tipo de infância um camponês judeu de um vilarejo insignificante na Galileia pudesse ou não ter tido” (ASLAN, 2013, p.62).

 

Depois que Jesus foi declarado messias, os únicos aspectos da sua infância e adolescência que contavam eram os que poderiam ser criativamente imaginados para sustentar qualquer pretensão teológica que se estivesse tentando fazer sobre a identidade de Jesus como Cristo. Para melhor ou pior, o único acesso que se pode ter ao verdadeiro Jesus não vem das histórias que foram contadas sobre ele após sua morte, mas sim do conhecimento de uma série de fatos que podemos reunir de sua vida, como parte de uma grande família judaica de carpinteiros/construtores lutando para sobreviver na pequena aldeia galileia de Nazaré (ASLAN, 2013, p.62).

 

Assim sendo Jesus, fruto de uma humilde família judaica que vivia numa imperceptível localidade situada às margens de uma ignorável província que apresentava um irregular histórico de efervescência e conturbada por diversos levantes subversivos ao império, Reza Aslan articula um dos principais pontos que considera constitutivo à personalidade e aspirações de Jesus; aquilo que – segundo o autor, seria a matriz de sua ideologia: a quarta filosofia.

 

[...] um movimento de independência totalmente novo que Josefo chamava de a “Quarta Filosofia”, para diferenciá-la das outras três “filosofias”: os fariseus, os saduceus e os essênios. O que colocava os membros da Quarta Filosofia à parte do resto era o seu compromisso inabalável com a libertação de Israel do Jugo estrangeiro e sua insistência fervorosa, até a morte, de que eles serviriam a nenhum senhor, mas apenas ao Deus único. Havia um termo bem-definido para esse tipo de crença, um termo que todos os judeus piedosos, independentemente da posição política, teriam reconhecido e orgulhosamente reivindicado para si: zelo (ASLAN, 2013, p.65).

 

Ser caraterizado como zeloso implicava em uma estrita adesão à Torá, seguir os passos dos profetas e heróis do passado e, sobretudo, a recusa a autoridade de qualquer mestre estrangeiro a não ser à soberania do único e verdadeiro Deus. Ao relacionar a figura do nazareno que proclamava a vinda do Reino de Deus dentro deste piedoso pensamento, Reza Aslan sugere que o Jesus histórico, ao exemplo de muitos outro do seu tempo, levava ao radicalismo extremo tal filosofia.

 

Muitos judeus na Palestina no século I se esforçaram para viver uma vida de zelo, cada um à sua própria maneira. Mas houve alguns que, a fim de preservar os ideais zelosos, estavam dispostos a recorrer a atos extremos de violência se necessário, não apenas contra os romanos e as massas não circuncidadas, mas contra os compatriotas judeus, aqueles que ousaram se submeter a Roma. Eles foram chamados de Zelotas (ASLAN, 2013, p.65).

 

Esses zelosos radicais, aos quais Reza Aslan defende ter pertencido o pensamento e a matriz de atuação de Jesus, não é o partido Zelota que surgiria anos mais tarde após a revolta judaica de 66EC. No período de vida de Jesus, a filosofia Zelota – segundo Aslan, não era a designação de um partido político ou grupo sectário, mas uma aspiração motivacional ligada ao difundido pensamento apocalíptico que era generalizado no contexto judaico nos tempos em que vivera Jesus, o nazareno[6].

Destarte, combinadas as circunstâncias progressivamente caóticas em que se encontrava a administração romana em Jerusalém, assomada ao crescente movimento de zelo radical que acomete algumas ilustres figuras no campo judaico, insurgem diversas revoltas motivadas por agitadores que oferecem perigo ao império e que, com seu próprio sangue, passam a registrar a história conturbada da Palestina no período próximo ao que vive o homem que, alguns anos após sofrer da mesma sorte dos seus insurretos contemporâneos, passaria a ser chamado pelos seus seguidores de “Filho de Deus”. Jesus não fora o único a liderar ousados levantes messiânicos ou sublevados movimentos que punham em perigo o poder romano. Antes e após sua vida, muitas agitações compuseram o cenário palestino.

Ao compreender Jesus dentro de todo este tumultuado contexto, Aslan afirma que há, dentro de todas as histórias narradas sobre a vida de Jesus de Nazaré, uma cena que – articulada fugazmente nos evangelhos canonizados, caracteriza a mensagem e o ministério de Jesus: a entrada gloriosa em Jerusalém e a agitação no Templo[7] (Mateus 21,1-17; Marcos 11,1-20; Lucas 19,28-46 e João 12,12-19.).

 

Deliberadamente subestimassem [os evangelistas] um episódio cujas implicações radicais teriam sido imediatamente reconhecidas por todos os que o testemunharam. Tão revelador é esse momento único na breve vida de Jesus que por si só pode ser usado para esclarecer sua missão, sua teologia, sua política, sua relação com as autoridades judaicas, sua relação com o judaísmo, em geral a sua relação à ocupação romana. Acima de tudo, esse evento singular explica por que um simples camponês das baixas colinas da Galileia era visto como uma ameaça ao sistema estabelecido a ponto de ser caçado, preso, torturado e executado (ASLAN, 2013, p.97).

 

Com a presente ilustração, Aslan sugere que esqueçamos os séculos de acrobacias exegéticas em torno da seguinte cena e nos dediquemos a examinar o fato narrado pelos evangelistas a partir de uma perspectiva puramente histórica (ASLAN, 2013, p.99), analisando a confusão que o cenário apresenta e as conclusões que podem ser tiradas após conhecer o histórico ao qual ocorre o drama. Tal cenário, se analisado dentro da realidade histórica adjacente ao período sugerido – de acordo com o autor, nos direciona o olhar ao embate que Jesus trava com as autoridades do Templo (Mc 12,13-17). A resposta que o nazareno dá após a ardilosa indagação sobre a licitude do pagamento do tributo a Cézar, o coloca na esfera de um revolucionário zelota, conforme o pensamento de Aslan.

 

A verdade é que a resposta de Jesus é a declaração mais clara que se pode encontrar nos evangelhos sobre onde, exatamente, ele situava no debate entre sacerdotes e zelotas, e não sobre a questão do tributo, mas sobre a questão muito mais significativa da soberania de Deus sobre a terra. As palavras de jesus falam por si [...] Cézar tem direito a “receber de volta” a moeda de denário não porque ele mereça o tributo, mas porque é a sua moeda [...] Deus tem o direito de “receber de volta” a terra que os romanos tomaram para si, porque é a terra de Deus [...] Esse é o argumento zelota em sua forma mais simples e concisa (ASLAN, 2013, p.101).

 

Esse episódio, segundo o autor, parece ter sido o suficiente para que as autoridades em Jerusalém compreendessem as pretensões de Jesus e o rotulassem como bandido. Alguns dias depois de tal acontecimento, logo após uma refeição de páscoa com seus discípulos, Jesus retira-se ao monte das Oliveiras para fugir das autoridades do templo que o estão a perseguir. Ao ser encontrado, desencadeia-se uma briga entre os seguidos de Jesus e a guardo do Templo, o que culmina com a fuga dos discípulos do nazareno.

Após o acontecimento, Jesus é capturado e entregue às autoridades de Jerusalém, onde é acusado de sedição – com base nos acontecimentos públicos e especialmente na afirmação promulgada no Templo alguns dias antes. O resultado de tal afirmação é a sorte de muitos outros que ousaram rebelar-se contra o poder romano: o “suplício perfeito”, para que sirva de lição a outros que aspirem o seu exemplo (PAGOLA, 2013, p.461). Reza enfatiza que Jesus não era membro do partido zelota que lançou fogo contra Roma, tampouco era líder violento incitador da revolução armada. Ele foi crucificado por Roma porque suas aspirações messiânicas ameaçavam a ocupação da Palestina e sua exasperada devoção colocava em perigo as autoridades do Templo (ASLAN, 2013, pp. 102-103).

 

O que mais costumava preocupar os governantes eram sempre as reações imprevisíveis das multidões. Também a Pilatos. Era verdade que Jesus não tinha seguidores armados, mas sua palavra atraía as pessoas. Estes casos era preciso cortá-los pela raiz, antes que o conflito adquirisse maiores proporções [...] Jesus atreveu-se a desafiar publicamente o sistema do Templo e, ao que parece, alguns peregrinos andam aclamando-o pelas ruas da cidade. Está em perigo a ordem pública: a pax romana (PAGOLA, 2013, p.461).

 

            Com isso, culmina na cruz o ministério iniciado às margens do rio Jordão após o desprendimento de Jesus do seu mestre João Batista. A mensagem do Batizador, dentro dos evangelhos, é anunciada como prefiguração do fim dos Tempos e a instalação do Reino de Deus. Não obstante, a narrativa evangélica quer ser bem específica sobre o papel de João Batista: o anúncio de que está por vir “alguém que é maior”. O batista não passa, dentro dos relatos evangélicos, de uma figura anunciadora da entrada de Jesus em seu ministério pela Galileia.

 

João não se considerou nunca o Messias dos últimos tempos. Ele era apenas aquele que iniciava a preparação. Sua visão era fascinante. (...) Viria em seguida uma segunda etapa que ocorreria já dentro da terra prometida. Não será, protagonizada pelo Batista, mas por uma figura misteriosa que João designa como “o mais forte” (PAGOLA, 2013, p.96-97).

 

 

            Apesar do que narram os evangelhos, sabe-se que o originalíssimo papel exercido pela “voz solitária que clamava no Deserto” tinha um discurso e um ministério muito maior do que aquele apresentado nos canonizados textos bíblicos.

 

A Aliança está corrompida. O pecado de Israel anulou-a (...) o “batismo” que João oferece é precisamente o novo rito de conversão e perdão radical de que Israel necessita: o começo de uma eleição e de uma aliança nova para esse povo fracassado (PAGOLA, 2013, p.90).

 

            Após o período em que Jesus passa no deserto com João Batista, a Galileia que encontra ao retornar já não é mais a Galileia da sua infância. As revoltas que eclodiram no território galileu agora eram cicatrizes profundas que desfiguravam a região de onde o nazareno passa a implantar abertamente seu projeto revolucionário, enquanto movimenta-se por toda a província operando milagres e convidando a todos que encontra pela frente a aderir o seu projeto do Reino de Deus. Ao percorrer pelas aldeias, Jesus incita seu movimento e dentre seus seguidores, escolhe doze aos quais far-se-ão mais próximos de seu exercício.

Nessas pregações pelo território galileu, nas sinagogas de Cafarnaum, Jesus passa a reconhecer-se como o escolhido de Deus para implantar em Sua terra a paz e a justiça. A partir dessa sensibilidade que ele encontra a autoridade para realizar os prodígios que realiza em sua peregrinação como revolucionário obstinado a curar os de coração partido, proclamar a liberdade dos cativos e libertar os prisioneiros que estão amarrados, para proclamar o ano da graça do Senhor, e o dia da vingança para nosso Deus (cf. Isaías 61,1-2).

 

Com sua base firmemente estabelecida e seu grupo de discípulos escolhidos a dedo crescendo, Jesus começou a visitar a sinagoga da aldeia para pregar sua mensagem para o povo de Cafarnaum [...] Jesus era um camponês. Ele falava como um camponês. Ele pregava em aramaico, a língua comum. Sua autoridade não era a dos estudiosos livrescos e da aristocracia sacerdotal [...] A [autoridade] de Jesus vinha diretamente de Deus (ASLAN, 2013, p.122).

 

             Assim, durante sua pregação, Jesus utiliza de sua autoridade e voz para – publicamente, criticar as figuras sacerdotais por suas baixezas diante da exploração aplicada ao povo em benefício do império romano. É justamente em um desses discursos que, pela primeira vez na sinagoga, Jesus cura um homem que, segundo os relatos, estava possuído pelo demônio. Esse fato surpreende a todos ao redor. A atividade de Jesus levanta muitas suposições sobre quem ele é, e diversas respostas são dadas a essa indagação, dependendo do círculo que coloca a incógnita em questão: para os galileus – um profeta itinerante; para o Templo – um falso profeta herege; aos romanos – um sublevado agitador.

 

Pois enquanto os discípulos acabariam por reconhecer Jesus como o messias prometido e herdeiro do Reino de Davi, enquanto os romanos o viam como um falso pretendente ao cargo de Rei dos Judeus e os escribas e os sacerdotes do Templo viriam a considera-lo uma ameaça blasfema ao controle do culto judaico, para a grande maioria dos judeus na Palestina [...] Jesus não era nem messias nem rei: era apenas mais um milagreiro viajante e exorcista profissional rodando pela Galileia realizando seus truques (ASLAN, 2013, p.125).

 

Diante de tais balbucios referentes à sua atuação, Jesus prosseguia sua caminhada tendo como o núcleo de seu movimento o anúncio do Reino de Deus. Esse Reino, dentro da compreensão de Jesus – de acordo com Reza, era um reino físico, imanente, signo de outros levantes de pretensões religiosas em busca da libertação do povo de Deus visando neste Deus o único soberano de seu povo, permeado pela quarta filosofia e figurado na nomenclatura herdada de seu mestre, João batista.

 

Na verdade, sua visão do Reino de Deus não era muito diferente da de seu mestre, João Batista, de quem ele provavelmente pegou a expressão. O que fez a sua reputação ser diferente da de João, no entanto, foi a sua concordância com os zelotas de que o Reino de Deus exigia não apenas uma transformação interna em direção à justiça e à retidão, mas uma completa inversão do sistema político, religioso e econômico do momento (ASLAN, 2013, p.140).

 

Jesus confiou aos seus discípulos mais próximos suas expectativas e intenções. Como consequência dessa abertura, e na preocupação de que os seus não fossem destinados à cruz por sedição – assim como ele foi, o nazareno pede aos doze que não alardeiem sobre o levante que se está a irromper. O segredo do Reino de Deus foi dado para que vós saibais, mas para os de fora, tudo é dito por parábolas, para que possam ver e não percebam, para que possam ouvir e não entendam (cf. Marcos 4,11-12). Todavia, Jesus foi tão bem-sucedido em suas aspirações messiânicas quanto qualquer um dos outros pretensos messias (ASLAN, 2013, p.156), apesar da inversão dos parâmetros messiânicos que as comunidades evangélicas passam a elaborar anos após sua morte.

 

[a Igreja primitiva] tomou a decisão consciente de mudar os parâmetros messiânicos. Eles misturaram e combinaram as diferentes representações do messias encontradas na Bíblia Hebraica para criar um candidato que transcendia qualquer modelo ou expectativa messiânica particular (ASLAN, 2013, p.156)

 

Nesse engenhoso deslocamento dos sujeitos e discursos evangélicos, deparamo-nos com o julgamento de Jesus diante de Pilatos que – segundo Aslan, é uma invenção de Marcos. A narrativa teatral da abstenção do imperador diante de um rebelde judeu não faz nenhum sentido e certamente não condizia com a figura do tirano e inexorável governador romano.

 

O que é verdadeiramente inacreditável é o retrato de Pôncio Pilatos – um homem conhecido por seu ódio aos judeus, pelo total desrespeito com rituais e costumes judaicos e por sua propensão para distraidamente assinar tantas ordens de execução que uma queixa formal foi apresentada contra ele em Roma – gastando sequer um momento que fosse de seu tempo refletindo sobre o destino de mais um agitador judeus (ASLAN, 2013, p.169).

 

Seja qual for a interpretação ou posição tomada diante do rebelde Jesus, é inquestionável a causa de sua morte: a cruz, suplício concedido a sublevados. Entretanto, é importante destacar que os relatos sobre a vida do Jesus de Nazaré foram escritos alguns anos após a revolta judaica ter sido dizimada e Jerusalém dividia. As inversões das polaridades são mecanismos literários produzidos especificamente para satisfazer as exigências dos leitores e prováveis redatores dos textos: o público romano. Assim, por bem, episódios como o do julgamento de Jesus perante Pilatos, para não causar desavenças com o evidente leitor, convém que se tire das mãos do governador romano a responsabilidade da morte de Jesus, o herói da narrativa, e posicioná-la diante das autoridades judaicas.

Desta forma, mesmo diante do ignominio e inquestionável fim que levou o revolucionário nazareno, os continuadores do seu movimento iniciaram um processo de adaptação de sua imagem, para concernir com o contexto e as exigências do período em que a mensagem desse profeta do Reino de Deus passa a ser relida. Logo, a essência de seu movimento – assim como sua natureza revolucionária, acabam por se perder dentro das interpretações e precatórias dos helênicos urbanizados responsáveis pela fixação do movimento iniciado pelo mártir do reino.

 

Era bastante natural que os autores dos evangelhos se distanciassem do movimento de independência judaica – apagando, tanto quanto possível, qualquer sinal de radicalismo ou violência, revolução ou fanatismo da história de Jesus – e adaptassem suas palavras e ações à nova situação política em que se encontravam (ASLAN, 2013, p.169).

 

            Assim, os responsáveis pela continuidade da movimentação incitada por Jesus de Nazaré fazem um drástico deslocamento de sua mensagem, redefinindo o foco do movimento que, antes direcionado à libertação de Israel da mão do estrangeiro, passa a ter como o horizonte a própria figura do nazareno, relido à luz de subjetivas esperas messiânicas e moldado dentro de uma áurea pacificadora e universalista que de nada tinha a ver com o rebelde nacionalista que fora pregado na cruz ou mesmo com as profecias que, erroneamente, passam a servir de plataforma para a construção do Cristo que os discípulos dedicam-se a moldar.

 

Mas – e aqui reside a chave para compreender a transformação dramática que teve lugar na mensagem de Jesus após a sua morte – Estevão não era um escriba ou estudioso. Ele não era um especialista nas escrituras. Não vivia em Jerusalém. Como tal, ele era o público perfeito para essa nova, inovadora e completamente heterodoxa interpretação do messias sendo difundida por um grupo de enlevados analfabetos cuja confiança em sua mensagem era igualada apenas à paixão com que eles a pregavam (ASLAN, 2013, p.184-185).

 

            O caráter apologético que a figura messiânica de Jesus passa a assumir na interpretação de seus posteriores seguidores logo atinge instâncias divinas, sendo pregado – dentro da compreensão desses discípulos, como um “homem Deus”, um “Deus feito carne”. A ampliação deste movimento – assim como o aprofundamento teológico que a identidade de Jesus toma dentro dos círculos de seus seguidores, transforma radicalmente as ideias do pregador itinerante e dá as novas matrizes que o movimento passaria a assumir nas sagradas folhas neotestamentárias.

 

Este olhar novo lançado sobre Jesus, suscitado pela fé num Deus que se identificou com ele até o ponto de ressuscitá-lo dentre os mortos, abre um horizonte insuspeitado a seus seguidores da Galileia. Na história de Jesus contemplam a irrupção de Deus. A história que narram é uma história vivida por Deus encarnado em seu Filho (PAGOLA, 2013, p.530).

 

            Destarte, é de suma importância lembrar que a safra educada e urbanizada de judeus de língua grega, responsáveis por dar a definição da mensagem de Jesus nos livros hodiernamente canonizados, não foram os discípulos que andaram ao lado do visionário nazareno. Esses discípulos, que estiveram ao lado dele e desempenharam um papel significativo na tentativa da implantação do movimento liderado pelo Jesus histórico, apresentam pouca influência na definição construída que Jesus, o Cristo, assume imerso na filosofia grega e que acaba tornando-se o principal veículo de evangelização e transmissão da fé.

           

Aqueles que conheciam Jesus – que entraram com ele em Jerusalém, proclamando-o rei, e o ajudaram a limpar o Templo em nome de Deus, que estavam lá quando ele foi preso e que o viram morrer numa morte solitária – desempenharam um papel surpreendentemente pequeno na definição do movimento que Jesus deixou (ASLAN, 2013, p.188).

 

Houve, contudo, confrontos diretos entre os seguidores originais de Jesus – os doze e sua família, e os anunciadores judeus de língua grega sobre a interpretação da mensagem do carpinteiro de Nazaré. O produto dessas dissidências moldou profundamente o que conhecemos como o cristianismo nos dias de hoje.

 

A discórdia entre os dois grupos resultou no surgimento de dois campos distintos e concorrentes de interpretação cristã nas décadas depois a crucificação: um defendido pelo irmão de Jesus, Tiago, e outro promovido pelo ex-fariseu Paulo. No fim das contas, seria a disputa que, mais do que qualquer outra coisa, iria moldar o cristianismo como a religião global que hoje conhecemos (ASLAN, 2013, p.189).

 

Pela conclusão lógica que se pode abstrair ao tomar contato com o material exposto no Novo Testamento – considerando o vasto número de textos atribuídos à autoridade de Paulo, fica fácil discernir qual das correntes passa a exercer mais influência no pensamento do cristianismo primitivo, fazendo da mensagem do revolucionário nazareno – como afirma Nietzsche, um “platonismo para o povo” (Nietzsche, Além do bem e do Mal – prólogo, 2003).

Em suma, como afirma o autor, o cristianismo de Paulo acabou por definir a doutrina cristã, oque provavelmente fora visto como uma transmutação bizarra da mensagem do nazareno aos seguidores originais de Jesus. O Cristo de Paulo – filho literal de Deus, divino, preexistente e iniciador de um novo gênero de humanidade é criação dele (cf. ASLAN, 2013, p.206) e, conforme o autor, acaba por obliterar todos os vestígios histórico-messiânicos judaicos que poder-se-iam atribuir a Jesus.

A obra de Aslan exibe uma linguagem acessível e uma narrativa fluida, expondo com muita seriedade, persuasão acadêmica e rigorosas proposições – quase axiomática, em defesa de suas teses. Não obstante, a ideia de explorar a figura de Jesus, separando os pretensos relatos bíblicos e enaltecendo o que se sabe sobre a história positiva de seu período é uma operação muito explorada por outros[8] no passado que – apesar do sentido positivo de dar fundamentos à obra de Aslan, descredita o brilhantismo do conteúdo por fazer da obra uma espécie de “Zombie”[9] – como afirma Larry Hurtado[10], não trazendo nada de novidade, apenas um envolvente apanhado geral, elaborado por uma fluida narrativa do que já fora construído e que Reza encontrou em seus vinte anos de pesquisa.

Embora decidido, o autor apresenta algumas posições de certa forma controversas ou imparciais dentro de suas elucidações – especialmente ao que tange à família de Jesus –, seja por cautela a não atacar profundamente prováveis leitores cristãos de posições mais conservadores, seja, talvez, por não possuir fundamentos contundentes suficientes para adentrar em temas mais peculiares da enigmática figura de Jesus, ou pelo fato de que aspectos que tocam mais intimamente na índole do nazareno não fazerem parte do campo de interesse da imagem do revolucionário que Aslan obstina-se a reconstruir[11].

            A obra é fulgente ao mostrar que um dos pontos mais significativos é que o livro não é sobre o cristianismo – afinal, Jesus não era cristão, mas judeu. O tema de Aslan converge para um judaísmo de veia revolucionária que existia no século I EC, do qual Jesus era apenas um “representante”. Contudo, refuto tais objeções, afinal, uma figura que faz sua mensagem – ou uma adaptação extraída do que ele de alguma forma transpassou, que seja – perdurar por milênios, com certeza teve algo além das prosaicas pretensões messiânicas e aviltada morte a que foi acometido. Seu maior ensinamento deve ser extraído de sua kenosis, sem manobras exegéticas ou filosóficas, apenas a luta por um ideal – o tão claro quanto pode ser para um analfabeto Judeu do século I, sem pretensões de encontrar o prelúdio de um Che Guevara insurgente do campesinato galileu.

 

Este “gozoso mensageiro” morreu como tinha vivido, como havia ensinado – não de modo algum para “salvar homens”, mas para demonstrar como se deve viver. O que legou à humanidade foi a prática: a sua atitude perante os juízes, perante as autoridades, perante os seus acusadores e perante toda a espécie de calúnias e ultrajes -  a sua atitude na cruz (NIETZSCHE, 2004, p.70).

 

Percebe-se, assim, que ao tentar tirar de questão uma figura de natureza fantástica, Reza comete um erro crasso – mes

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