30/09/2020

A proteção de dados como direito fundamental: uma decisão do STF

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Ana Luiza Santos Silva 

 

O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em decisão histórica, a proteção de dados pessoais como direito fundamental autônomo. 

A decisão foi proferida quando referendada uma decisão liminar da ministra Rosa Weber nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6387, 6388, 6389, 6393 e 6390. As ações tramitaram conjuntamente e a decisão proferida na ADI 6387 – ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - foi reproduzida nos demais processos. 

Origem da decisão liminar

O governo federal, em abril desse ano, editou a Medida Provisória n.954, que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) e de Serviço Móvel Pessoal (SMP) com o IBGE para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus.

O Conselho Federal da OAB, então, ajuizou pedido de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade contra o inteiro teor do texto legal (ADI 6387), seguido pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB (ADI 6388), pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB (ADI 6389), pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL (ADI 6390) e pelo Partido Comunista do Brasil (ADI 6393). 

De acordo com a MP – então vigente - as empresas de telecomunicação prestadoras do STFC e do SMP deveriam disponibilizar ao IBGE, em meio eletrônico, a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial. 

Ato do Presidente da Fundação, ouvida a ANATEL, disporia sobre o procedimento para a disponibilização dos dados, que teriam caráter sigiloso e seriam usados exclusivamente para a finalidade prevista na lei. Não poderiam ser utilizados como objeto de certidão ou meio de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial e o IBGE não teria autorização de disponibilizar tais dados a quaisquer empresas públicas ou privadas ou a órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de quaisquer dos entes federativos. Consta ainda que o IBGE deveria informar, em seu site, as situações em que os dados referidos foram utilizados para, então, divulgar relatório de impacto à proteção de dados pessoais, nos termos do disposto na LGPD.

Passada a pandemia, as informações compartilhadas deveriam ser eliminadas das bases de dados, desde que a fundação já tivesse concluído a produção estatística oficial, o que deveria ser feito em até trinta dias.

O Conselho Federal da OAB afirmou que a MP apresentava os vícios da inconstitucionalidade formal, por inobservância dos requisitos constitucionais para edição de medida provisória, e da inconstitucionalidade material, pela violação das regras constitucionais da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, do sigilo dos dados e da autodeterminação informativa. 

Vamos focar nos vícios materiais alegados na ADIN, dentre eles o desrespeito ao direito fundamental à proteção de dados pessoais, que assegura a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, ressalvada a relativização, nessa última hipótese, mediante ordem judicial e para fins de persecução penal. 

Argumentou-se também que houve afronta ao direito fundamental à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas como fundamento do indivíduo para determinar e controlar, frente ao Estado, a utilização dos seus dados. 

Nesse ponto o CFOAB destaca o fato de que nosso ordenamento constitucional considera o direito fundamental à proteção de dados dentro da acepção do direito à autodeterminação informativa, que surgiu como um desmembramento do direito à privacidade, tendo como finalidade tutelar de forma mais eficiente o conjunto de dados considerados pessoais do cidadão, garantindo-lhes o controle, inclusive diante de intervenções estatais. 

Como a MP n. 954/2020 não indicava a finalidade do uso da pesquisa estatística, não demonstrava a forma pela qual adequados e necessários os dados nem delimitava o campo de proteção na operação de processamento de dados, violava o sigilo de dados dos brasileiros e invadia a privacidade e a intimidade de todos. 

No mérito da ação, o autor pediu a procedência do pedido para que a Medida Provisória n. 954/2020 fosse declarada inconstitucional em sua integralidade e que houvesse o reconhecimento do direito fundamental à autodeterminação informativa. 

Nesta ocasião o IBGE já havia começado a oficiar as operadoras de telefonia móvel e fixa para que enviassem os dados pessoais sob sua guarda à fundação pública; então foi reiterado o pedido de urgência que justificou a medida liminar requerida. 

A decisão da Relatora Ministra Rosa Weber 

Segundo a ministra, embora não se possa subestimar a gravidade da crise sanitária nem a necessidade de formulação de políticas públicas que demandem dados específicos para o enfrentamento da pandemia, não se poderia legitimar o atropelo de garantias fundamentais consagradas na Constituição.

Para ela, a Medida Provisória dispunha sobre a finalidade e o modo de utilização dos dados, mas limitava-se a enunciar que seriam utilizados exclusivamente pela Fundação IBGE para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares. 

Não delimitava o objeto da estatística a ser produzida, a finalidade específica, tampouco a amplitude. Também não esclarecia a necessidade de disponibilização dos dados, como seriam efetivamente utilizados e, muito importante, não esclarecia o interesse público legítimo no compartilhamento dos dados pessoais dos usuários dos serviços de telefonia.

O voto da Relatora foca na necessidade, adequação e a proporcionalidade da medida e concluiu que a MP não oferecia condições para “avaliação da sua adequação e necessidade, assim entendidas como a compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas finalidades”. 

Em relação ao art. 3º, incisos I e II da Medida Provisória, que  dispõe que os dados compartilhados “terão caráter sigiloso” e “serão utilizados exclusivamente para a finalidade prevista no § 1º do art. 2º”, e o art. 3º, § 1º, que veda ao IBGE compartilhar os dados disponibilizados com outros entes, públicos ou privados, a Ministra entendeu que o ato normativo não apresentou mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja na sua transmissão ou no tratamento. 

A Ministra levou em consideração o fato de que o projeto de lei de conversão da Medida Provisória, quando do julgamento,  já possuía 344 propostas de emenda, muitas delas repetidamente pleiteando a inserção na norma da restrição aos dados estritamente necessários, bem como a necessidade de elaboração de relatório de impacto de segurança da informação anterior à coleta e uso dos dados, além da maior transparência na definição da finalidade e do uso dos dados compartilhados. 

Também reforçou que a adequada tutela do direito à intimidade, privacidade e proteção de dados pessoais é estruturada pela característica da inviolabilidade e que deferir a medida cautelar prevenia danos irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários dos serviços de telefonia fixa e móvel.

Determinou-se, pois, que o IBGE se abstivesse de requerer a disponibilização dos dados objeto da medida provisória e, caso já o tivesse feito, que sustasse tal pedido, com imediata comunicação às operadoras de telefonia. 

Em Plenário 

Posteriormente, o plenário da Suprema Corte suspendeu em definitivo a aplicabilidade da Medida Provisória e impediu o compartilhamento de dados pessoais dos usuários de telefonia entre as companhias de telefonia e o IBGE.

O ministro Alexandre de Moraes ressaltou que os direitos e as garantias fundamentais não são absolutos e encontram limites nos demais direitos consagrados na Constituição e que a relativização desses direitos deve observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que não ocorreu, a seu ver, na hipótese do texto da MP. 

Luiz Roberto Barroso ponderou que a norma deveria ter sido precedida de debate público acerca da necessidade, da relevância e da urgência e a Ministra Cármen Lúcia deixou claro que não existem dados insignificantes no atual contexto de processamento automatizado de informações. 

O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, lembrou que a Organização Mundial da Saúde, no seu regulamento sanitário internacional - incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 10.212/2020 - afasta a possibilidade de processamentos de dados desnecessários e incompatíveis com o propósito de avaliação e manejo dos riscos à saúde. 

Os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, também acompanharam a relatora.

O único a divergir e votar pelo indeferimento da liminar foi o ministro Marco Aurélio: para ele caberia aguardar o exame da MP 954/2020 pelo Congresso Nacional, o responsável por apreciar a conveniência e a oportunidade da normatização da matéria. 

Um dos aspectos mais importantes da decisão é a consolidação do dado pessoal como merecedor da tutela constitucional, afastando-se a ideia de que existem dados pessoais neutros, insignificantes, desprovidos de proteção. 

Portanto, qualquer que seja o dado que leve à identificação de uma pessoa – e que pode ser utilizado tanto pelo mercado quanto pelo Estado - merece proteção constitucional, apesar de não existir (ainda) previsão expressa de direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais na Constituição Federal.

Os avanços no sentido de uma positivação formal, que carrega uma carga concreta adicional, pode ser implementada pela PEC nº 17/19, aprovada de forma unânime em comissões parlamentares, pelo plenário do Senado Federal e na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. 

A decisão do Supremo reforça o mérito de tal proposição, que por ora aguarda apreciação desta última Casa Legislativa.

Autores: Ana Luiza Santos Silva e Edgar Gaston Jacobs

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Edgar Gastón Jacobs é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor e pesquisador na área de Direito Educacional, atua como advogado, consultor em direito educacional e parecerista para Instituições de Ensino Superior. Se preferir, entre em contato pelo telefone: (31) 3494.0281

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