03/03/2006

A pouco compreendida arte abstrata

Estudo aponta que professores dos ensinos fundamental e médio têm dificuldade em abordar o tema.

Embora o abstracionismo tenha ganhado força, no Brasil, nos anos 1950, a vertente artística ainda é um tabu entre os professores de artes. "Eles sentem dificuldade quando necessitam abordar a arte abstrata em suas aulas nos ensinos Fundamental e Médio", comenta Elizabete Lucas Machado, autora da dissertação de mestrado Figurativismo ou não: uma práxis na arte brasileira nas décadas de 1950 a 1970, apresentada no Instituto de Artes, campus de São Paulo.

Motivada por essa constatação junto aos professores, sob orientação da docente Loris Graldi Rampazzo, Elizabete buscou compreender como as artes abstrata e figurativa foram abordadas, em suas formas e resultados, por quatro artistas nas décadas de 1950 a 1970, período em que ela se estabeleceu no País.

Elizabete define a pintura abstrata como aquela que não usa elementos, assuntos ou modelos do mundo exterior. "Ela exclui as idéias clássicas de imitação artística, faz analogias com a matemática ou a geometria não-euclidiana e suprime o tema", comenta. "Seu início está com o construtivismo russo que, entre 1910 e 1920, buscava uma arte não-representativa para romper definitivamente o espaço visual renascentista."

Para explicar como a chegada do abstracionismo provocou os artistas brasileiros, a pesquisadora escolheu quatro artistas nacionais. Eles apresentam em comum o fato de integrarem o eixo Rio-São Paulo, serem nascidos nas décadas de 1910 e 1920, manterem grande vínculo com o Brasil, mesmo que tenham morado no exterior, e terem devotado, nos anos 1950, a maior parte de sua produção para a pintura.

Os artistas escolhidos se relacionaram de forma bem diferentes com a arte abstrata. Lygia Pape (1929-2004) fez toda a sua carreira profissional com enfoque no construtivismo; Luiz Sacilotto (1924-2003), que era figurativo, passou à abstração na década de 1950 e seguiu carreira nessa direção; Milton Dacosta (1915-1988), também figurativo no início da carreira, optou pelo abstracionismo naquela década, só que, antes de 1970, retomou a figuração; e Mário Gruber (Santos, 1927), que se negou a aderir à nova tendência do abstracionismo. (Veja quadro Os artistas nacionais.)

O estudo também enfoca o contexto histórico, político e econômico dos anos 1950, a influência de Mário Pedrosa como teórico e crítico, a importância dos museus inaugurados no período no Brasil e da Bienal de São Paulo, além da influência norte-americana, mais explicitamente de Nova York na arte latino-americana, na visão crítica da intelectual argentina radicada na Colômbia Marta Traba (1930-1983). (Veja quadro Arte abstrata no Brasil.)

Para Elizabete, a arte abstrata, por não ser estudada em profundidade nos cursos de ensino superior, é ainda negligenciada em seu poder formativo de sensibilidade. "Se os jovens estranham o abstracionismo, isso talvez ocorra porque os seus professores ainda não compreendem o suficiente essa corrente estética", destaca.

Origem - O objetivo da pintura abstrata era afastar-se da inspiração mítica, romântica, simbólica, utilizando um processo de criação mais racional. Um referencial obrigatório seria Kandinsky, em 1910, com sua Aquarela abstrata. "Do ponto de vista cronológico, ele é o primeiro a chegar a uma visão abstrata. Foi um ato consciente e não um impulso passageiro."

Outros nomes que Elizabete destaca são o russo Malevitch, com o suprematismo, que ele chama de "novo realismo pictórico", e Mondrian, com seu máximo rigor na aplicação da linha, cor e espaço. "Ele denominou o seu trabalho de Neoplasticismo, pelo uso de formas geométricas elementares, como o triangulo, e as cores primarias - azul, amarelo e vermelho", diz.

No Brasil, a primeira obra dessa vertente seria Composição abstrata, de 1922, de Vicente Rego Monteiro. "Ele voltara de Paris no ano anterior, com forte influência cubista, mas não obteve grande repercussão dentro do modernismo brasileiro", conta Elizabete.

No ano seguinte, o fundo abstrato de A negra, de Tarsila do Amaral, casaria mais impacto, assim como obras posteriores de Cícero Dias, considerado o primeiro pintor geométrico nacional. "Ele fez, em 1948, na Secretaria das Finanças, em Recife, a primeira pintura mural abstrata da América Latina", relata a pesquisadora.

A partir de 1948, estudos sobre abstracionismo geométrico, como Waldemar Cordeiro, eram a favor da autodisciplina e contra qualquer tipo de enfoque emocional. O artista Ivan Serpa via a atitude plástica concretista como um projeto de vanguarda. "Aglutinados no grupo Ruptura, eles defendiam a ausência de qualquer tipo de transcendência no trabalho e a racionalidade estética", afirma Elizabete.

Em 1959, artistas como Amílcar de Castro, Lygia Clark e Lygia Pape formam o grupo Neoconcreto. "Não concordavam com o que julgava excesso de racionalização dos concretos e queriam a volta da esfera da subjetividade, onde a idéia concreta da produção era trocada pela da criação", conta a mestre.
Os artistas nacionais
Lygia Pape
Pintora, desenhista e gravadora, ligada aos movimentos concreto e neoconcreto, participou do grupo Frente (1956-1957) e da primeira etapa do movimento concreto no Brasil. Foi programadora visual de inúmeros filmes como Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha.

Luiz Sacilotto
Pintor, desenhista e escultor. Inicialmente figurativo de tendência expressionista, foi um dos pioneiros da arte concreta no Brasil, tendo integrado o grupo Ruptura (1952). Explorou ao máximo essa vertente, aprofundando questões de plano e de superfície, até os seus últimos trabalhos.

Milton Dacosta
Pintor e gravador, oscilou entre o figurativo e o abstrato. Fez paisagens e retratos pós-impressionistas e aderiu às formas simples e geométricas, desenvolvendo um estilo chamado de cubismo lírico. Passou por uma fase de abstração geométrica e, por volta de 1967, retornou à figura, com formas femininas de sensualidade barroca.

Mário Gruber
Pioneiro do realismo fantástico latino-americano, manteve-se dentro do figurativo, com suas crianças, bonecos e mascarados feitos com técnica requintada. Realizou incansáveis pesquisas e reflexões de caráter subjetivo-místico. Retomou fôlego com novas figurações do Pop Art na década de 1960.


Arte abstrata no Brasil
A arte abstrata, em suas correntes do abstracionismo geométrico, abstracionismo lírico e arte concreta se espalha pelo Brasil nos anos 1950. Adquire um significado de atualização cultural, de progresso, antagonizando com o figurativismo da pintura local, oriundo da modernidade dos anos 1930 e 1940, marcada pelo tom nativista, social e realista.

Após a Segunda Guerra Mundial, com a reabertura dos contatos com a realidade artística internacional, os EUA - que nunca foram o centro da arte mundial - procuram difundir a abstração, relacionando-a com a modernização e o progresso. Isso está muito associado ao fato de a temática social ser atacada pela ação anticomunista dos EUA, a partir de 1947, como resposta à guerra fria.

Em sua pesquisa, Elizabete Lucas Machado mostra que a fundação do Museu de Arte de São Paulo, em 1947, e dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, de 1948, além da Bienal de São Paulo, de 1951, foram importantes pólos de influência da arte abstrata. "Os museus e bienais inseriram o País no circuito internacional das vanguardas e foram um contraponto ao incipiente figurativismo muralista de raízes culturais brasileiras", acredita a pesquisadora do IA.

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