A Desvalorização Silenciosa (II): Como a SEDUC-SP Subverte a Titulação de Mestres e Doutores e a Mecânica de 2026 que a Consagra.
Ivan Carlos Zampin;
A desvalorização sistemática da formação acadêmica e da expertise docente, historicamente reconhecida como um pilar fundamental da qualidade educacional, consolidou-se como uma política de estado concreta na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP). Este movimento, que promove um gradual desprestígio das titulações de mestrado e doutorado no magistério, vai além de uma mera alteração administrativa; trata-se de uma reconfiguração sutil, porém profunda, da hierarquia do conhecimento dentro do ecossistema escolar.
Essa guinada materializa-se com clareza alarmante na minuta da proposta para o sistema de atribuição de aulas de 2026. O documento não apenas confirma essa tendência preocupante, mas a operacionaliza juridicamente, transferindo para o plano normativo um conceito que subverte a lógica meritocrática do desenvolvimento profissional. Ao esvaziar o peso das pós-graduações stricto sensu no critério de pontuação, a SEDUC-SP envia uma mensagem perversa ao corpo docente, ou seja, “o investimento em especialização e pesquisa não é mais um diferencial valorizado pela rede”.
As implicações desta medida são duplamente nefastas. Em um primeiro nível, desestimula a qualificação continuada, criando um teto de retorno sobre o investimento (de tempo e recursos) do professor. Por que dedicar anos a um doutorado se o reconhecimento no sistema de atribuição será ínfimo? Em um segundo nível, mais estrutural, empobrece o ambiente de aprendizagem. A presença de mestres e doutores em sala de aula não é um mero adorno curricular; é a garantia de um ensino permeado por metodologias atualizadas, pensamento crítico apurado e a capacidade de introduzir os alunos aos universos da pesquisa e da produção científica. A longo prazo, essa política não só desvaloriza o professor, mas desidrata a qualidade do ensino ofertado, comprometendo o futuro intelectual das próximas gerações.
Dessa forma, a proposta para 2026 não é um ajuste, mas a cristalização de um projeto que fragiliza os alicerces do ensino público ao desincentivar a excelência e ignorar o papel insubstituível da expertise de alto nível na formação cidadã.
A Moeda Paralela de Valorização e a Hierarquia Invertida
O cerne da questão reside na criação de uma "moeda paralela" de valorização profissional. Historicamente, mestres e doutores, após rigorosos processos de seleção e anos de dedicação à pesquisa, tinham seu esforço reconhecido. Contudo, a SEDUC-SP tem gradualmente transferido esse reconhecimento para os cursos de formação continuada geridos internamente pela EFAPE. Estes cursos, muitas vezes de curta duração e com conteúdo alinhado às diretrizes momentâneas da secretaria, passaram a ser tratados como equivalentes ou até superiores às titulações stricto sensu.
Evidências dessa política são visíveis em editais de promoção e bonificação, onde a pontuação de um curso da EFAPE pode equiparar-se à de um título de pós-graduação. Essa equiparação é, na prática, uma desvalorização, pois, ignora a profundidade e a complexidade de um mestrado ou doutorado.
O Caso Paradigmático: A Atribuição de Aulas de 2026
A proposta para o sistema de atribuição de aulas do ano letivo de 2026 eleva essa lógica a um novo patamar, transformando-a em um critério formal e quantificado. O modelo estabelece:
- 20% da pontuação total para "Cursos Realizados". Aqui, incluem-se prioritariamente os cursos ofertados pela EFAPE e outras formações vinculadas aos programas da SEDUC.
- 7,5% da pontuação total para "Formação Acadêmica". Esta categoria abrange as titulações de Mestrado e Doutorado.
A simples leitura desses percentuais é elucidativa, ou seja, um curso de formação continuada da EFAPE, que pode durar algumas semanas ou meses, tem um peso potencial no currículo do professor que é quase três vezes maior do que o peso conferido a um título de mestre ou doutor, que exige anos de dedicação exclusiva, pesquisa original, produção de dissertação ou tese e defesa perante uma banca examinadora.
Essa disparidade numérica não é um mero detalhe operacional; é a materialização da desvalorização silenciosa. Ela envia uma mensagem clara e cruel ao professor, evidenciando que o conhecimento especializado, crítico e produzido no ambiente universitário vale significativamente menos, na prática da sua carreira, do que a adesão aos programas de formação da própria secretaria.
As Consequências Ampliadas por essa Disparidade
As consequências dessa política, agora escancarada na atribuição de aulas, são profundamente danosas, ou seja, provoca o Desincentivo Estrutural à Qualificação Acadêmica, assim, a pergunta se torna inevitável e prática: "Por que investir tempo, recursos e esforço intelectual em uma pós-graduação acadêmica se o sistema me recompensa muito mais por fazer cursos internos e de curta duração?" Isso pode levar a um esvaziamento da pesquisa educacional paulista e a um afastamento das universidades.
Endogenia e Controle Reforçados: A política fortalece um ciclo de pensamento único.
Os cursos da EFAPE, por serem desenhados pela SEDUC-SP, tendem a reforçar as diretrizes do governo estadual, sem o contraditório e a diversidade teórica das universidades. Ao dar um peso tão maior a esses cursos, a secretaria não apenas desvaloriza o mestrado e doutorado, mas incentiva ativamente que o professor priorize uma formação que reproduz seu próprio discurso, limitando a autonomia intelectual e a capacidade crítica docente.
Impacto na Motivação e Êxodo de Cérebros, desta feita, Mestres e Doutores veem, de forma tangível (7,5% vs. 20%), seu conhecimento sendo tratado como secundário. A frustração e o desânimo podem acelerar o afastamento dos profissionais mais qualificados da rede pública, em busca de sistemas que verdadeiramente reconheçam sua expertise.
A rede perde seus especialistas, com a Precarização do Processo de Atribuição, ou seja, um professor com vários cursos da EFAPE, mas sem pós-graduação, pode ter vantagem sobre um Mestre ou Doutor na disputa por uma vaga. Isso inverte a lógica meritocrática da qualificação e prejudica a alocação dos profissionais mais preparados academicamente para as salas de aula.
A Institucionalização do Aviltamento
E essa institucionalização não é um descuido, mas um projeto. Ao premiar a formação interna, o Estado fabrica consenso, premiando a assimilação a uma lógica única de pensamento. O professor transforma-se em um técnico reprodutor de diretrizes, e não em um intelectual autônomo, capaz de questionar e inovar.
O aviltamento, portanto, é duplo, do mesmo modo, rebaixa-se simbolicamente o título de mestre e doutor, e rebaixa-se materialmente a profissão, ao desincentivar financeiramente a busca por qualificação de excelência. O que se anuncia não é apenas um corte de pontos, mas um cerco ao pensamento divergente, uma aposta na asfixia intelectual das salas de aula.
As consequências são um empobrecimento tangível do diálogo pedagógico. Sem o oxigênio da pesquisa acadêmica crítica, a prática escolar se atrofia, repetindo fórmulas ultrapassadas e distanciando-se da complexidade do mundo real. A sala de aula vira um território estéril, onde a curiosidade é suplantada pelo conformismo.
Dessa forma, a rede paulista não está apenas economizando recursos, ou seja, está ativamente desmontando um dos pilares fundamentais da educação de qualidade a qual é a figura do professor-pesquisador. Este é um ataque calculado à inteligência coletiva das escolas, um movimento que substitui a excelência pela obediência e a pluralidade pela homogeneidade.
O resultado mais perverso será legado às novas gerações, assim, uma educação que, em vez de emancipar, “adestra”. Ao desprezar o conhecimento produzido nas universidades, a SEDUC-SP enterra a possibilidade de uma escola transformadora e condena o público à servidão intelectual. O aviltamento do professor é, em última instância, o aviltamento do futuro de milhões de estudantes.
Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio e Gestor Escolar.
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252