06/11/2025

A Desestruturação da Educação Paulista: Crítica à Tecnocracia Educacional

Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252

 

Introdução

O sistema educacional paulista vive um processo acelerado de desmonte estrutural sob a justificativa de modernização e eficiência. Na prática, o que se observa é a substituição do projeto pedagógico por uma lógica empresarial que ignora a complexidade do processo educativo. Conforme alerta Alavarse (2023), reformas educacionais implementadas sem diálogo com a comunidade escolar tendem a produzir rupturas que aprofundam crises ao invés de solucioná-las. Esta abordagem tecnocrática desconsidera o acúmulo histórico de conhecimentos pedagógicos construídos ao longo de décadas de experiências educacionais bem-sucedidas. A suposta racionalidade administrativa esconde, na verdade, um projeto político de desmontagem do caráter público da educação. As consequências desta política já são sentidas nos cotidianos escolares, onde o discurso da qualidade esvazia-se ante a precarização real das condições de ensino.

Instabilidade como Projeto

A constante alteração de diretrizes e normas tem criado um ambiente de insegurança pedagógica permanente. As escolas são submetidas a sucessivas mudanças curriculares sem que haja tempo para a consolidação de qualquer projeto educativo consistente. Essa "política do ensaio permanente", como define Cássio (2023), transforma as unidades escolares em laboratórios de experiências efêmeras, onde professores e estudantes são cobrados por resultados em processos que mudam antes mesmo de serem compreendidos. A falta de continuidade nas propostas pedagógicas gera um sentimento de desorientação entre os educadores, que precisam constantemente adaptar-se a novas demandas sem o necessário suporte formativo. Esta instabilidade deliberada fragiliza os vínculos educativos e compromete a construção de projetos pedagógicos identitários. O resultado é um processo de esvaziamento da autonomia escolar, onde a capacidade de planejamento a médio e longo prazo torna-se inviável.

Erosão da Democracia Escolar

Os espaços de participação coletiva vêm sendo sistematicamente esvaziados em favor de mecanismos centralizados de controle. A suposta autonomia propagada pelo discurso oficial mascara uma realidade de crescente tutelamento das escolas por meio de plataformas digitais, indicadores de desempenho e metas quantitativas. O professor é convertido de educador em executor de protocolos, num processo que Viana (1999) identifica como desprofissionalização por supervisão excessiva. Os conselhos escolares e associações de pais e mestres perdem progressivamente seu poder deliberativo, tornando-se instâncias meramente consultivas ou decorativas. A tomada de decisões sobre questões fundamentais para o cotidiano escolar é transferida para instâncias distantes da realidade local. Esta centralização ignora o princípio constitucional da gestão democrática e representa um retrocesso histórico nas conquistas da comunidade educacional.

Precarização do Trabalho Docente

A formação continuada tornou-se fragmentada e desconectada da realidade escolar, enquanto o tempo pedagógico é consumido por demandas burocráticas e relatórios. A rotatividade de orientações e a falta de suporte consistente criam um cenário de sobrecarga que compromete a qualidade do ensino. Pesquisas da APEOESP (2023) revelam que os educadores passam mais tempo preenchendo formulários que planejando aulas, invertendo completamente as prioridades do trabalho educativo. A intensificação do trabalho docente através de múltiplas tarefas administrativas rouba o tempo necessário para o estudo, o planejamento coletivo e a reflexão pedagógica. Simultaneamente, observa-se a desvalorização salarial e a precarização das condições de contratação, com aumento significativo de professores em regime temporário. Este cenário favorece o adoecimento profissional e a perda de vínculos estáveis com a comunidade escolar.

Ampliação das Desigualdades

As reformas implementadas aprofundam as assimetrias educacionais existentes. Escolas em territórios vulneráveis, que já enfrentam carências históricas, são as mais afetadas pela instabilidade normativa e pela falta de suporte adequado. A imposição de modelos únicos para realidades diversas, sem consideração pelas especificidades regionais e socioculturais, converte a desigualdade em política de Estado, agora respaldada por um discurso de eficiência administrativa. As populações mais pobres, majoritariamente negras e periféricas, sofrem duplamente com a precarização do ensino público e a impossibilidade de acesso à educação privada. A meritocracia propagada pelo modelo ignora completamente as condições materiais desiguais que marcam o território paulista. Desta forma, a escola, que deveria ser instrumento de redução das desigualdades, torna-se mecanismo de sua reprodução ampliada.

Tecnocracia versus Educação

O projeto em curso substitui a dimensão política e humana da educação por uma visão tecnocrática que reduz processos educativos a indicadores quantitativos. Nessa perspectiva, estudantes tornam-se números, professores viram operadores de sistema, e escolas transformam-se em unidades de produção. Perde-se assim a essência da educação como prática social transformadora e espaço de construção da cidadania. A padronização excessiva desconsidera as múltiplas inteligências, saberes e culturas que compõem o universo educacional. A avaliação baseada exclusivamente em resultados mensuráveis ignora processos fundamentais de desenvolvimento humano e formação crítica. Esta lógica produtivista nega a educação como direito humano fundamental, tratando-a como mercadoria ou serviço a ser controlado por métricas de eficiência.

Considerações Finais

A atual política educacional paulista representa um grave retrocesso na concepção de educação pública. Ao privilegiar a gestão sobre a pedagogia, os números sobre as pessoas, e o controle sobre a confiança, desvia-se do caminho da qualidade socialmente referenciada para adotar uma visão mercadológica que despreza a função social da escola. Urge resgatar a educação como direito social e processo coletivo de construção de conhecimento. Como bem sintetiza Cássio (2023), "uma reforma que não escuta a escola é uma reforma contra a escola". O futuro da educação paulista depende da capacidade de resistência e proposição de todos que acreditam na escola pública como espaço de transformação social. A reconstrução do sistema educacional exigirá o resgate dos princípios da gestão democrática, da valorização dos profissionais da educação e do compromisso com a qualidade socialmente referenciada. Somente através do diálogo verdadeiro com a comunidade escolar será possível construir políticas educacionais que realmente respondam aos desafios contemporâneos.

Referências

ALAVARSE, O. Reformas educacionais em São Paulo: entre o discurso e a realidade. Revista Brasileira de Educação, v. 28, 2023.

APEOESP. Pesquisa sobre condições de trabalho docente no Estado de São Paulo. São Paulo, 2023.

CÁSSIO, F. Educação em tempos de instabilidade. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2023.

VIANA, H. R. G. Planejamento e controle da manutenção. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999.

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