A Desestruturação da Educação Paulista: A Falácia sobre o Uso das Plataformas nas Escolas do Estado.
Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252
Introdução
A suposta modernização do sistema educacional paulista através da implantação massiva de plataformas digitais tem se revelado, na prática, um sofisticado mecanismo de desumanização do processo educativo. Sob o discurso sedutor da inovação tecnológica e da educação 4.0, esconde-se um projeto de terceirização do ensino e de controle burocrático sobre o trabalho docente, que representa a face mais perversa da mercantilização da educação pública. Esta falsa modernidade não apenas aprofunda desigualdades históricas, como também consolida um modelo de apartheid digital que segrega estudantes por sua condição socioeconômica e acesso à tecnologia. A retórica governamental sobre a "transformação digital" mascara uma estratégia bem articulada de desmonte da escola pública, onde a tecnologia não serve como ferramenta de emancipação, mas como instrumento de dominação e controle, esvaziando o caráter crítico e transformador da educação.
Conforme alerta Silva (2022), a ideologia tecnicista que fundamenta estas políticas opera através da naturalização de processos que, na verdade, representam a captura corporativa do espaço público educacional por grandes conglomerados tecnológicos. Esta colonização digital do espaço escolar substitui o projeto pedagógico por pacotes tecnológicos padronizados, convertendo o conhecimento em commodity e os professores em meros operadores de sistema. O estado paulista, ao aderir acriticamente a este modelo, torna-se cúmplice ativo da destruição do sentido público da educação, privilegiando interesses corporativos em detrimento do direito à educação de qualidade. A suposta neutralidade tecnológica esconde uma opção política pela desresponsabilização estatal e pela precarização do trabalho docente, configurando um dos capítulos mais perversos do atual desmonte educacional.
A implantação destas plataformas sem a necessária discussão pedagógica com a comunidade escolar revela o caráter autoritário desta reforma, que impõe de cima para baixo um modelo educacional alienante e excludente. Longe de representar avanço, esta política constitui um violento retrocesso que nos remete aos piores momentos do tecnicismo educacional, agora potencializado pela voracidade do capitalismo de vigilância. A resistência a este modelo não é nostalgia do passado, mas defesa intransigente de uma educação emancipatória, laica e verdadeiramente cidadã.
A Ilusão da Inovação Tecnológica
As plataformas educacionais impostas às escolas estaduais paulistas funcionam como cavalo de troia para um modelo de educação padronizado e despersonalizado. Longe de representarem avanço pedagógico, estas ferramentas convertem processos educativos complexos em sequências lineares de atividades mecanizadas. O conhecimento é fragmentado em micro competências mensuráveis, transformando estudantes em usuários passivos e professores em meros tutores de sistema. A riqueza das interações humanas é substituída pela fria lógica algorítmica, que ignora as múltiplas dimensões do desenvolvimento humano. A falsa eficiência propagada por estas plataformas baseia-se na ilusão de que processos educativos podem ser reduzidos a algoritmos e métricas quantitativas. Como demonstra Santos (2023), esta visão estreita da educação desconsidera que a aprendizagem significativa ocorre através de relações dialógicas e experiências culturais ricas, que não cabem em modelos padronizados. A suposta personalização do ensino via plataformas revela-se, na prática, como mera adaptação de ritmo, mantendo intacta a lógica da homogeneização.
Ampliação das Desigualdades Educacionais
A imposição indiscriminada do ensino mediado por plataformas ignora a gritante desigualdade digital que caracteriza o Estado de São Paulo. Enquanto escolas de regiões centrais dispõem de infraestrutura adequada, unidades periféricas e do interior enfrentam sérias limitações de acesso à internet e falta de equipamentos. Estudantes de famílias pobres são duplamente penalizados, ou seja: pela precariedade material e pela impossibilidade de contar com apoio familiar no uso das tecnologias. O resultado é o aprofundamento do abismo educacional entre ricos e pobres. A pesquisa de Oliveira e Silva (2023) evidencia que 68% dos estudantes da rede pública paulista não possuem acesso estável à internet em suas residências, enquanto 42% compartilham um único dispositivo com toda a família. Esta realidade converte o discurso da inclusão digital em retórica vazia, que serve apenas para mascarar o abandono do Estado em relação às suas obrigações constitucionais. A meritocracia digital propagada pelas plataformas oculta o fato de que as condições de acesso são profundamente desiguais.
Terceirização do Ensino e Desvalorização Docente
As plataformas representam a face mais perversa da terceirização do ensino público. Empresas privadas passam a determinar conteúdos, metodologias e ritmos de aprendizagem, reduzindo o professor à condição de coadjuvante em seu próprio processo educativo. O saber docente, construído em anos de experiência e formação, é substituído por pacotes pedagógicos pré-fabricados. Esta lógica nega a essência da relação educativa, que se fundamenta no vínculo humano e na mediação qualificada do professor. Conforme análise de Costa (2022), os contratos com empresas de tecnologia educacional representam a transferência de recursos públicos para o setor privado, sem qualquer comprovação de resultados educacionais efetivos. O professor transforma-se em executor de roteiros pedagógicos desenvolvidos por terceiros, perdendo sua autonomia para criar, adaptar e inovar conforme as necessidades de seus estudantes. Esta desprofissionalização é agravada pela precarização das condições de trabalho, com aumento significativo da carga burocrática e diminuição do tempo para atividades pedagogicamente significativas.
Controle e Intensificação do Trabalho Docente
Longe de simplificar o trabalho educacional, as plataformas têm se mostrado instrumentos de controle e intensificação da jornada docente. Professores são sobrecarregados com demandas burocráticas de registro, monitoramento e relatórios, roubando tempo precioso que deveria ser dedicado ao planejamento criativo e ao atendimento personalizado aos estudantes. A suposta autonomia propagada pelo discurso oficial mascara uma realidade de vigilância constante e perda de liberdade pedagógica. O estudo de Pereira et al (2023) demonstra que os educadores gastam em média 12 horas semanais apenas com o preenchimento de dados nas plataformas, tempo que deveria ser dedicado à preparação de aulas e à formação continuada. Esta lógica de controle transforma a relação pedagógica em processo de fiscalização permanente, onde cada ação do professor deve ser registrada, mensurada e justificada. A intensificação do trabalho atinge níveis críticos, contribuindo para o adoecimento profissional e a perda da motivação docente.
A Pedagogia da Dataficação
A obsessão por dados e métricas transforma a educação em processo de dataficação, onde tudo deve ser quantificado, medido e comparado. Estudantes são reduzidos a conjuntos de dados, suas aprendizagens a gráficos e curvas, suas dificuldades a indicadores de desempenho. Esta visão tecnocrática desumaniza as relações educativas e empobrece o processo de ensino-aprendizagem, que perde sua dimensão artística, criativa e humana. Como critica Fernandes (2023), a dataficação da educação representa a capitulação da pedagogia à lógica do mercado, onde o que não pode ser medido é considerado irrelevante. Processos complexos de desenvolvimento humano são reduzidos a números e estatísticas, ignorando dimensões fundamentais como criatividade, criticidade, solidariedade e empatia. A tirania dos dados sufoca a dimensão propriamente educativa do processo escolar, convertendo a escola em empresa e o conhecimento em commodity.
Considerações Finais
A falácia da modernização através das plataformas educacionais revela-se como mais um capítulo do desmonte da educação pública paulista, seguindo uma lógica perversa que substitui o projeto pedagógico por mecanismos de gestão empresarial. Sob o manto sedutor da tecnologia, esconde-se um projeto de desprofissionalização docente, terceirização do ensino e padronização educacional que atende aos interesses do capital e não às necessidades reais de aprendizagem dos estudantes. Urge denunciar este embuste e reafirmar que tecnologia na educação só tem sentido quando serve à pedagogia, nunca quando a substitui, pois a mediação humana qualificada permanece como elemento insubstituível no processo educativo. A verdadeira inovação educacional passa pelo investimento massivo em formação docente continuada, em condições adequadas de trabalho e no resgate da escola como espaço humano de encontro, diálogo e construção coletiva do conhecimento, onde a diversidade de saberes e experiências seja valorizada. É fundamental resistir à lógica da dataficação e reafirmar a educação como direito humano fundamental, que não pode ser reduzido a algoritmos e métricas de desempenho, sob pena de perdermos a essência formadora da escola. A defesa de uma educação pública de qualidade exige o enfrentamento deste modelo tecnocrático e a construção de alternativas pedagogicamente fundamentadas e socialmente referenciadas, que resgatem o caráter emancipatório da educação. A comunidade escolar precisa se mobilizar contra esta falsa inovação que, na prática, representa um retrocesso histórico na concepção de educação pública, laica, gratuita e de qualidade. As plataformas não podem se tornar as novas paredes da escola, limitando horizontes em vez de ampliá-los, cerceando a criatividade em vez de estimulá-la. O futuro da educação paulista depende de nossa capacidade de dizer não a este modelo excludente e construir, coletivamente, uma escola que efetivamente garanta o direito de aprender a todos, com ou sem tecnologia. Que este trabalho sirva como alerta e convite à reflexão crítica sobre os rumos da educação pública em São Paulo, na certeza de que outra educação é possível, necessária e urgente.
Referências Bibliográficas
COSTA, M. A. Terceirização do ensino público: as plataformas educacionais como estratégia de mercantilização. Revista Brasileira de Política Educacional, v. 15, n. 2, p. 45-67, 2022.
FERNANDES, R. S. Dataficação da educação: críticas à pedagogia dos algoritmos. São Paulo: Editora Cortez, 2023.
OLIVEIRA, P. R.; SILVA, M. A. Desigualdade digital e educação: um estudo sobre o acesso às tecnologias na rede pública paulista. Cadernos de Pesquisa, v. 53, n. 189, p. 89-112, 2023.
PEREIRA, L. et al. Trabalho docente e plataformas digitais: intensificação e controle na educação básica. Educação & Sociedade, v. 44, n. 2023, p. 1-18, 2023.
SANTOS, C. R. Tecnologia educacional ou desumanização do ensino?. Petrópolis: Editora Vozes, 2023.
SILVA, J. P. A ideologia tecnicista na educação contemporânea. Curitiba: Editora CRV, 2022.