A Desestruturação da Educação Paulista: A Falácia do Uso das Plataformas e o Cerco das Avaliações aos Professores.
Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252
Introdução
A Cortina de Fumaça da Inovação
A SEDUC-SP constrói uma narrativa de modernização através de plataformas digitais e da "Avaliação 360º", mascarando um sistemático projeto de desmonte do ensino público. Esta falsa inovação, analisada por Freire (1996) como "ideologia da neutralidade tecnológica", serve para ocultar o abandono estrutural das escolas estaduais. Enquanto se gasta milhões em sistemas digitais duvidosos, escolas permanecem com goteiras, carteiras quebradas e bibliotecas fechadas. O discurso da eficiência gerencial esconde a precarização das condições de trabalho e o desrespeito aos profissionais da educação, criando um cenário onde a forma prevalece sobre o conteúdo e a aparência substitui a essência educativa.
A Falácia Tecnológica e a Exclusão Digital Estrutural
A imposição das plataformas do Centro de Mídias de São Paulo (CMSP), ignoram a profunda desigualdade digital que caracteriza o Estado mais rico do país. Pesquisas do DataSenado (2023) revelam que 38% dos estudantes da rede pública paulista não têm acesso estável à internet em casa. Nas periferias urbanas e zonas rurais, este índice chega a 67%, escancarando o abismo social. A infraestrutura escolar decadente com laboratórios de informática obsoletos e redes wi-fi incapazes de suportar o acesso simultâneo transforma a suposta revolução digital em mais um elemento de exclusão. Esta realidade contraria frontalmente o previsto na LDB e no PNE, configurando negligência institucional.
Desprofissionalização Docente: Duplo Cerco
A redução do professor a operador de plataformas representa o primeiro estágio de desvalorização, onde a expertise pedagógica é substituída pela capacidade de seguir manuais técnicos. A "Avaliação 360º" coroa este processo ao transferir para alunos leigos a atribuição de notas que impactam carreiras e remunerações. Como demonstra Tardif (2014), o trabalho docente envolve saberes experienciais, curriculares e pedagógicos que escapam à compreensão imediata dos estudantes. Relatos de assembleias docentes revelam casos de professores que receberam notas baixas por exigirem pontualidade ou cobrarem tarefas, evidenciando a banalização do processo avaliativo.
Gerencialismo: A Lógica Perversa do Mercado na Educação
A importação do modelo empresarial 360º para a educação configura o que Ball (2005) denomina "ditadura da performatividade", onde números substituem processos e estatísticas anulam reflexões pedagógicas. Esta lógica transforma a relação educativa em transação comercial, onde o aluno-cliente tem sempre razão e o professor-prestador deve satisfazer demandas imediatistas. A padronização curricular através das plataformas ignora as particularidades socioculturais de cada comunidade escolar, impondo um currículo único que desrespeita a diversidade paulista. A gestão democrática, prevista na LDB, é substituída por autoritarismo tecnocrático.
A Realidade Versus a Retórica: O Abismo Educacional
Enquanto a SEDUC gasta recursos em sistemas de controle, salas de aula seguem com mais de 40 alunos, violando as diretrizes do Fundeb. As plataformas digitais, além dos erros conceituais, frequentemente ficam fora do ar durante aulas, desperdiçando tempo pedagógico precioso. A pressão por "entregáveis" e "métricas verdes" cria um ambiente de estresse permanente, onde a qualidade cede lugar à quantidade de atividades registradas. Pesquisas do SINPRO-SP (2024) mostram que 72% dos professores relatam exaustão mental e 45% fazem uso de medicamentos controlados para suportar a carga de trabalho.
Consequências Sistêmicas: Do Adoecimento à Privatização
A combinação entre cobranças absurdas e ferramentas ineficientes gera um cenário de caos pedagógico que serve aos interesses privatistas. Conforme demonstra Saviani (2007), a desqualificação sistemática do ensino público abre espaço para os negócios educacionais. O adoecimento docente em massa com aumento de 156% em licenças por saúde mental entre 2022-2024, fragiliza a resistência contra os retrocessos. A avaliação punitiva desmoraliza a categoria perante a sociedade, criando o imaginário de que os professores são os culpados pelo fracasso educacional, isentando o poder público de suas responsabilidades.
Por uma Educação Democrática: Alternativas Concretas
A resistência deve articular-se com propostas consistentes, ou seja, avaliação institucional participativa nos moldes de Sordi (2014), com indicadores qualitativos e autoavaliação coletiva; formação continuada emancipatória baseada em Freire e Nóvoa; investimento de 6% do PIB estadual em educação, garantindo infraestrutura digna; gestão democrática efetiva com eleição de diretores e conselhos deliberativos; e planos de carreira que valorizem a experiência e qualificação docente. É fundamental construir fóruns permanentes de discussão pedagógica que envolvam todos os segmentos da comunidade escolar.
A Urgência da Resistência Qualificada, Ampliação e Discussão
A desestruturação da educação paulista não é acidental, mas um projeto político planejado que se expressa na retirada de autonomia docente, na padronização curricular descontextualizada e na precarização das condições de trabalho. A política educacional recente tem priorizado indicadores quantitativos em detrimento do processo formativo integral, reforçando a lógica gerencial e produtivista que reduz estudantes a números e professores a executores de apostilas. Tal cenário aprofunda desigualdades históricas, sobretudo em territórios periféricos onde a escola é um dos poucos espaços públicos de garantia de direitos.
Frente a isso, a resistência não pode se dar apenas pela crítica moral ou político-partidária, mas precisa ser qualificada, isto é, fundamentada em pesquisas acadêmicas, dados empíricos e experiências pedagógicas emancipadoras já consolidadas na educação brasileira e latino-americana. A defesa da escola pública exige articulação entre sindicatos, universidades, conselhos escolares, coletivos pedagógicos e movimentos sociais, pois nenhum professor, isoladamente, consegue enfrentar o desmonte que é estrutural. Como argumenta Paulo Freire, “a conscientização não é um ato espontâneo, mas resultado da prática crítica, coletiva e dialogada”.
Assim, construir resistência é também produzir conhecimento, registrar práticas pedagógicas, ocupar espaços de decisão e disputar narrativas públicas sobre o sentido da educação. A luta pela qualidade da escola pública não é apenas técnica, mas profundamente ética e social, pois envolve o direito das crianças e jovens de aprender e de produzir sentido sobre o mundo em que vivem. Como lembra Freire, “a educação não muda o mundo, mas muda pessoas que mudarão o mundo” — e é justamente por isso que há tanto esforço para esvaziá-la, ou seja, onde há consciência, há transformação.
Conclusão
A desestruturação da educação paulista não é um erro administrativo, mas um projeto político deliberado que visa transformar direitos sociais em mercadorias. O uso discursivo das plataformas digitais e das avaliações performativas opera como mecanismo de controle simbólico e disciplinar sobre o trabalho docente, enfraquecendo sua autonomia intelectual, restringindo sua criatividade pedagógica e substituindo o vínculo educativo por relações burocratizadas de produtividade e vigilância. O que se apresenta como inovação é, na verdade, uma estratégia de desresponsabilização do Estado e, transfere-se ao professor a culpa pelos resultados, ao mesmo tempo que se omite o sucateamento continuado da escola pública.
Se a educação é reduzida a métricas, gráficos e índices descontextualizados, perde-se sua dimensão humana, crítica e cultural. Tal lógica aprofunda desigualdades, especialmente nas periferias, onde a escola desempenha papel central na garantia de direitos e na construção de cidadania. É nesse ponto que a luta pela escola pública se torna luta pela democracia, ou seja, defendendo o espaço escolar é defender a possibilidade de pensar, questionar e sonhar coletivamente aquilo que a lógica tecnocrática busca neutralizar.
Por isso, a resistência docente precisa ser organizada, solidária e fundamentada em produção de conhecimento e prática coletiva. Trata-se de reconstruir a autoridade pedagógica não como poder vertical, mas como presença ética, dialógica e transformadora, tal como propõe Freire. Exige-se, ainda, o fortalecimento das instâncias de participação democrática, sendo eles, os conselhos escolares deliberativos, eleição de gestores, conferências permanentes de educação e articulação com universidades públicas para pesquisa e formação continuada.
Defender a educação pública paulista hoje é ato de responsabilidade histórica. É afirmar que ensinar não é cumprir metas, mas formar sujeitos críticos capazes de compreender e transformar a realidade. É repetir, contra o discurso do mercado, que a escola não é empresa e o professor não é funcionário de balcão, é intelectual, mediador cultural, agente de emancipação. Assim, resistir é mais que protestar, é reconstruir o sentido da educação como projeto coletivo de futuro.
Referências
BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Vozes, 2014.
BALL, S. Profissionalismo, Gerencialismo e Performatividade. Cadernos de Pesquisa, v.35, n.126, 2005.
SAVIANI, D. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007.
ESTEVÃO, C. Gestão e Avaliação Educacional. Porto: Porto Editora, 2015.
DEJOURS, C. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: FGV, 2015.
SORDI, M. Avaliação como Aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2014.
DATASENADO. Pesquisa Nacional de Acesso Digital. Brasília: 2023.
SINPRO-SP. Saúde Mental Docente. São Paulo: 2024.