A Bolsa Mais Professores da CAPES: Entre o Incentivo Emergencial e a Evasão das Causas Estruturais da Crise Docente.
Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar, Especialista em Gestão Pública, Especialista em Psicopedagogia Institucional.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252
A Portaria nº 327/2025 da CAPES, que cria a Bolsa Mais Professores, é um documento síntese da condição do magistério público brasileiro. Ao oferecer R$ 2.100,00 mensais e uma especialização gratuita a professores ingressantes, o governo federal realiza um movimento duplo, ou seja, implementa uma política de indução concreta e, ao mesmo tempo, escancara sua incapacidade (ou falta de vontade política) de intervir diretamente nos entraves estruturais que definem a profissão. A iniciativa não é um simples estímulo e sim, é um mecanismo de compensação financeira por adentrar um campo minado. Analisá-la exige ir além do edital e cruzar dados sobre formação, mercado de trabalho, condições materiais e a geografia desigual da oferta educacional no Brasil. A bolsa é um remédio necessário, mas sua própria existência diagnostica uma doença crônica e mal tratada.
O motivo declarado da CAPES é “fomentar o ingresso e a permanência”. Por trás dessa formulação técnica, escondem-se realidades brutais documentadas pela pesquisa acadêmica, ou seja, um abandono massivo da carreira nos primeiros cinco anos de exercício, fenômeno conhecido como “rotatividade” ou “sangria docente”. Estudo seminal de Gatti e Barretto (2009) já apontava a desvalorização salarial e as péssimas condições de trabalho como vetores centrais dessa fuga. A bolsa atua, portanto, como uma âncora financeira temporária para segurar o profissional no período mais crítico, a fase de indução, quando o choque entre a formação idealizada e a realidade precária das escolas é mais agudo. Não se trata apenas de dificuldades de adaptação a “sistemas precários” das secretarias, mas de um confronto direto com a materialidade da exclusão social, ou seja, turmas superlotadas, infraestrutura deficiente, violência simbólica e física, excesso de burocracia e uma demanda social por funções que transcendem em muito a de ensinar. A bolsa é, neste sentido, um “adicional por risco psicossocial”.
A especialização obrigatória de 360h em EAD é o elemento mais progressista da portaria, pois alinha teoria e prática de forma coerente com a literatura sobre formação docente. Autores como Nóvoa (2019) e Tardif (2014) defendem que a profissionalização se constrói na prática reflexiva e que os primeiros anos devem ser acompanhados de mentoria e formação continuada e situada. A CAPES, ao fornecer um curso com foco em “prática pedagógica e indução à carreira”, assume um papel que deveria ser das redes de ensino. É uma federalização de uma responsabilidade local negligenciada. No entanto, a modalidade EAD, embora necessária pela escala, traz o risco de uma formação genérica, que pode não dar conta das especificidades locais e dos contextos desiguais vividos pelos bolsistas.
A opção por uma bolsa complementar temporária, e não por um aumento do piso salarial nacional, é o núcleo da contradição da política. Ela revela os limites do federalismo brasileiro na educação. Um reajuste do piso, calculado por lei, pressiona os cofres de estados e municípios, gerando conflitos federativos e judiciais, como visto historicamente. A bolsa é um contorno, portanto, é recurso federal direto, de execução ágil, sem criar um direito permanente. Analiticamente, é uma política de by-pass, ou seja, em vez de desobstruir a artéria entupida da valorização salarial estrutural, cria um vaso alternativo e temporário. O perigo é a criação de uma casta docente de iniciantes com renda temporariamente melhorada, que, após 24 meses, mergulha novamente na estagnação financeira da carreira, a menos que ocorram concursos ou progressões. Conforme alerta Saviani (2009), “políticas focalistas” e provisórias tendem a criar um mosaico de direitos, fragilizando a unidade da categoria e a noção de carreira como um todo orgânico e digno.
Para calibrar a real necessidade dessa bolsa, um cruzamento de dados com a situação de redes estaduais como a de São Paulo é devastadoramente ilustrativo. São Paulo, detentor do maior orçamento da Federação, personifica a hipocrisia na gestão da força de trabalho docente. Mesmo após maciços concursos públicos, persiste um abismo entre o número de aprovados e as nomeações efetivadas, deixando milhares de vagas “cobertas” por um exército de professores temporários (Regime de Designação Temporária - RDT). Este regime viola frontalmente o Estatuto do Magistério Paulista (LC 1.164/2012), que prega a efetivação como regra. Esses profissionais, muitos com décadas de serviço, vivem na insegurança jurídica e financeira, sem direito a planejamento de carreira ou licenças prolongadas. A bolsa da CAPES, ironicamente, não é para eles, os veteranos precarizados, mas para os novos ingressantes, que podem ser justamente os contratados para preencher essas vagas instáveis.
O mecanismo perverso se completa com o sistema de atribuição de aulas, a chamada “lista tripla”. A legislação paulista (Artigo 13 do Decreto nº 57.141/2011) entrega aos diretores a escolha final entre três candidatos, institucionalizando uma discriminação legalizada. Na prática, como denunciam estudos de casos e o sindicalismo docente, professores com maior tempo de casa, laços com a comunidade escolar ou perfil considerado “menos conflituoso” são privilegiados. O resultado é uma segregação técnica da força de trabalho docente, ou seja, as escolas em áreas de maior vulnerabilidade socioeconômica, com maiores desafios pedagógicos e de convivência, tornam-se destino quase exclusivo de professores iniciantes, temporários ou sem vínculos políticos na rede. É a “lei de Gerson” aplicada à educação, assim, os melhores (ou mais estabelecidos) ficam com as escolas "boas", os demais, com as "difíceis". A Bolsa Mais Professores pode funcionar, neste cenário, como um bônus de insalubridade pedagógica, um incentivo para assumir justamente as aulas e escolas que o sistema perverso de atribuição torna menos desejáveis. Neste sentido vamos detalhar melhor esta situação:
O "Sistema de Faróis" e a Sofisticação da Discriminação na Rede Estadual Paulista
A análise do cenário paulista, mencionada no decorrer deste texto, ganha uma nova e perturbadora camada com a implementação do chamado "sistema de faróis" (verde, amarelo, vermelho) para avaliação docente. Esta prática, embora não esteja formalizada em uma lei específica de número novo, opera dentro do arcabouço regulatório existente, sobretudo no Decreto nº 57.141/2011 e nas resoluções da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC-SP), representando a evolução burocrática e "gerencialista" do mecanismo perverso da lista tripla.
1. A Base Legal e a Aberta Interpretativa
O Artigo 13 do Decreto 57.141/2011 já estabelecia que, na atribuição de aulas, "a escolha final será feita pelo Diretor da escola". Este é o dispositivo legal que abre a brecha. A SEDUC-SP, em suas normativas internas, manuais de gestão e programas como o "Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar" (ou similares), passou a instituir sistemas de avaliação de desempenho docente que vão além da análise meramente curricular. É nesse contexto que surge a métrica dos faróis. Trata-se de uma ferramenta de gestão por resultados que, acoplada ao poder discricionário do diretor previsto no decreto, transforma a subjetividade em um processo aparentemente técnico.
2. O Funcionamento do Sistema e seus Efeitos Perversos
- Farol Verde: O professor é considerado "adequado" ou "eficiente". Tem prioridade na renovação de sua lotação naquela unidade. Na prática, consolida-se como o professor "preferencial" do diretor.
- Farol Amarelo: Sinaliza "necessidade de atenção" ou "desempenho abaixo do esperado". A permanência fica a critério do diretor. Este é o estágio de maior pressão e ambiguidade. O professor é colocado em uma situação de submissão, onde a concordância com as diretrizes da gestão, independentemente de seu mérito pedagógico, pode se tornar a estratégia para "melhorar a cor". Cria um ambiente propício ao assédio moral e ao silenciamento de críticas.
- Farol Vermelho: O professor é considerado "problemático" ou "incompatível" com o projeto da escola. A recomendação (ou convite forçado) é que ele procure outra unidade na fase de atribuição. Aqui reside o núcleo da discriminação legalizada e burocratizada. O professor não é formalmente demitido (se for efetivo), mas é convidado a se auto-excluir. Ele se torna um "pária administrativo", tendo que buscar vaga em escolas que, por sua vez, muitas vezes recebem esses profissionais com reservas.
3. O Cruzamento com a Lista Tripla e a Segregação Aprimorada
O sistema de faróis não substitui a lista tripla; ele a instrumentaliza e "dá fundamento" a ela. Quando um diretor recebe a lista com três nomes para uma vaga, ele não está mais escolhendo com base apenas em tempo de casa ou em uma impressão vaga. Ele pode, formalmente, justificar sua escolha com base no "índice de desempenho" (a cor do farol) do professor.
- Professores "Verdes": São os primeiros a terem suas aulas atribuídas dentro de sua própria escola e têm enorme vantagem ao entrarem nas listas triplas de outras unidades cobiçadas.
- Professores "Vermelhos": São efetivamente banidos das escolas consideradas "boas". Sua única chance é conseguir uma vaga, via lista tripla, em escolas com alta rotatividade, muitas vezes localizadas em regiões periféricas e com os maiores desafios socioeducacionais. O sistema, portanto, automatiza e legitima a segregação: as escolas mais vulneráveis tornam-se o depósito dos professores indesejados pelas outras unidades, agravando a desigualdade educacional. Os alunos com maiores necessidades ficam, sistematicamente, com os professores marcados pelo sistema como "problema".
4. A Cultura do Conformismo e o Esvaziamento da Autonomia Docente
A ameaça do farol amarelo ou vermelho exerce um poderoso efeito silenciador. Questões legítimas sobre condições de trabalho, projetos pedagógicos alternativos, críticas à gestão ou à superlotação de salas de aula podem ser facilmente enquadradas como "dificuldade de adaptação" ou "conflituosidade". A avaliação deixa de ser um instrumento formativo para a carreira e se transforma em um mecanismo de controle e padronização de comportamentos. A criatividade pedagógica é sufocada em nome da adesão a modelos impostos de cima para baixo. A lei do diretor, agora respaldada por "dados" de desempenho, anula o princípio da gestão democrática e da autonomia da comunidade escolar.
5. Da Discriminação Velada à Exclusão Burocratizada
O "sistema de faróis" representa a modernização da lógica perversa inerente ao regime de atribuição paulista. Ele transfere para o campo da "gestão por resultados" um jargão caro ao novo management público uma prática excludente. A discricionariedade do diretor, antes baseada em critérios informais e relacionais, agora se veste com a roupagem técnica da avaliação por métricas. Isso é profundamente danoso porque:
- Naturaliza a Injustiça: A segregação docente deixa de ser vista como um problema político e passa a ser interpretada como um "merecimento" ou "deficiência" individual.
- Agrava a Precariedade: Professores efetivos, que deveriam ter estabilidade, passam a viver uma instabilidade funcional, sendo moralmente coagidos a migrar.
- Pune a Advocacia por Melhores Condições: O professor que luta por uma escola melhor para si e para seus alunos é o primeiro a receber um farol vermelho.
Portanto, a Bolsa Mais Professores da CAPES, ao tentar atrair professores para a rede pública, ignora solenemente que sistemas estaduais como o de São Paulo possuem mecanismos internos sofisticados de gestão que expulsam, segregam e desmoralizam seus próprios profissionais. Enquanto a União oferece uma bolsa para entrar, o Estado de São Paulo aperfeiçoa as ferramentas para excluir, controlar e hierarquizar seus docentes de maneira burocrática e, por isso, ainda mais eficaz e insidiosa. A verdadeira valorização exigiria a revogação do Artigo 13 do Decreto 57.141/2011 e o fim de sistemas de avaliação punitivos e segregadores como o dos faróis, substituindo-os por processos de atribuição que considerem a preferência do professor e as necessidades da escola de forma equilibrada, e por avaliações formativas e colaborativas.
Deste modo, a iniciativa da CAPES é um artefato político complexo. Seu lado virtuoso é inegável, ou seja, fornece um alívio imediato na renda do ingressante, associa formação continuada ao apoio financeiro e pode, de fato, segurar talentos em áreas críticas, evitando um colapso maior. Ela reconhece, na prática, que começar a lecionar na rede pública é uma tarefa hercúlea que merece um suporte extra.
Todavia, seu lado perverso é que ela opera dentro da lógica da precarização, não a confronta. Subsidia a entrada em um sistema doente, sem curá-lo. Ao não exigir, como contrapartida dos entes federados, a efetivação progressiva ou a reforma dos mecanismos de atribuição, a União lava as mãos. A bolsa torna-se uma muleta que permite ao paciente (as redes estaduais e municipais) continuar caminhando sem tratar a fratura exposta. A valorização real, como definida por pesquisadores como Freitas (2014), requer triângulo indissociável, sendo crucial, a formação inicial e continuada de qualidade, condições adequadas de trabalho e salário digno e carreira atraente. A Bolsa Mais Professores mexe, temporariamente, em dois vértices (formação e salário), mas ignora solenemente o terceiro (condições) e não transforma o salário temporário em direito permanente.
Em conclusão, a Bolsa Mais Professores é uma medida de urgência em um contexto de colapso crônico. Ela é sintomática de um Estado que, diante da incapacidade de orquestrar uma reforma profunda e pactuada da carreira docente nacional, opta por lançar boias salva-vidas para grupos específicos. Seu sucesso será medido não apenas pelo número de bolsistas retidos, mas por sua capacidade de catalisar, a partir da pressão desses novos professores mais bem formados e conscientes de seus direitos, mudanças profundas nas redes locais. Do contrário, após 24 meses, o bolsista egresso se juntará à multidão de docentes desiludidos, tendo sua bolsa como uma lembrança de um breve alívio em uma carreira marcada pelo subfinanciamento e pela desconsideração. A hora da muleta é passageira, a necessidade de uma nova arquitetura para a profissão docente é permanente e urgente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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