27/11/2025

A Alfabetização como Alicerce da Humanização e da Inserção no Mundo da Cultura.

Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252

 

A alfabetização, caracterizada etimologicamente como a aquisição do alfabeto e, na prática, como o ensino das habilidades de ler e escrever, conforme define Soares (2004, p. 15), constitui muito mais do que uma simples técnica ou uma fase escolar. Ela é um dos processos mais fundamentais na vida de um ser humano, funcionando como a chave que abre as portas para a plena participação na vida social, cultural e intelectual. Compreendida como o domínio inicial da leitura e da escrita, a alfabetização é o alicerce indispensável sobre o qual se constrói toda a trajetória educacional subsequente do indivíduo. Sua importância, no entanto, transcende em muito os muros da escola, mantendo uma íntima proximidade com a vida cotidiana e, ao mesmo tempo, estabelecendo o elo crucial para a inserção no universo mais amplo e complexo da vida não-cotidiana, um ingresso que se torna quase impossível sem o domínio da linguagem escrita. Este poderoso instrumento, uma vez apropriado, coloca nas mãos dos indivíduos a capacidade de não apenas se comunicar, mas de objetivar o pensamento, de acessar o conhecimento acumulado pela humanidade e de se reconhecer como parte ativa de uma comunidade letrada.

A visão da alfabetização como um treinamento mecânico de habilidades perceptuais e de correspondência entre grafemas e fonemas, predominante até fins da década de 1980, como apontam Brandão e Leal, mostrou-se profundamente limitada. Nessa perspectiva reducionista, a criança era submetida a um processo em que ler se resumia a decodificar sinais gráficos e escrever, a copiar letras e sílabas. Os textos, quando presentes, eram meros "arremedos", como bem descrevem as autoras, estruturas vazias cuja única função era exercitar certos sons, sem qualquer preocupação com a construção de sentidos. O resultado, frequentemente, era a formação de indivíduos capazes de decifrar palavras soltas, mas incapazes de compreender um cartaz ou redigir um bilhete simples, evidenciando uma lacuna abissal entre a técnica e a funcionalidade. Felizmente, essa concepção vem sendo suplantada por uma visão mais complexa e humana do processo, influenciada por trabalhos pioneiros como os de Ferreiro e Teberosky, que redimensionaram a alfabetização, entendendo a criança como um sujeito ativo que constrói hipóteses sobre a escrita.

Esta nova perspectiva corrobora as experiências de educadores inspirados por Freinet e Paulo Freire, para quem a alfabetização não poderia estar dissociada da reflexão e da criação. Nesse contexto, a aprendizagem não deve ser um ato de mera transmissão, mas uma atividade significativa, que dialogue com a vida do educando. Como afirma Vigotski (2001, p. 388), a aprendizagem não começa na idade escolar; ela existe também na idade pré-escolar. Os conceitos que a criança traz de sua experiência cotidiana, os chamados conceitos espontâneos, são produtos de uma aprendizagem que ocorre muito antes da entrada no sistema formal de ensino. A alfabetização, então, atua como uma ponte entre esse mundo cotidiano e o universo dos conceitos científicos. É por meio dela que a conquista da linguagem escrita favorece a apropriação de conhecimentos sistematizados, os quais, por sua vez, promovem uma reestruturação dos próprios conceitos cotidianos, elevando o pensamento a um patamar de maior abstração e consciência.

Nesse sentido, a alfabetização pode ser entendida como um momento preparador para o ingresso em universos simbólicos complexos, como o da ciência, da filosofia e de certas formas de arte. Ela põe em movimento uma percepção generalizante que é decisiva para a conscientização que a criança desenvolve sobre seus próprios processos mentais. Um processo de alfabetização bem-sucedido, portanto, é aquele que vai além do "ler e escrever"; é aquele que propicia uma aprendizagem reflexiva, atraente e, sobretudo, importante na vida real dos educandos. É nesse espírito que se insere o trabalho contemporâneo de leitura e produção de textos desde os primeiros momentos da alfabetização, tal como defendem Brandão e Leal. Trazer para a sala de aula os "textos autênticos", ou seja, aqueles que circulam socialmente em seus diversos gêneros é, fundamental para que a criança perceba, desde cedo, a função social da escrita e se engaje em uma autêntica busca pela construção de sentidos.

Essa abordagem valoriza as experiências orais das crianças, que muitas vezes servem como base para a compreensão dos gêneros textuais escritos. Como demonstram Val e Barros (2003) em seu estudo, crianças não alfabéticas já possuem conhecimentos sobre gêneros instrucionais, construídos em situações de interação oral. Dar um recado oralmente assemelha-se à produção de um bilhete; narrar uma história oralmente aproxima-se da escrita de um conto. No entanto, é crucial ter clareza, como alertam as autoras, que dominar um gênero na modalidade oral não é o mesmo que dominá-lo na escrita. O texto escrito exige o controle de um conjunto específico de recursos linguísticos, de uma organização sintática e discursiva mais elaborada, que precisa ser sistematicamente ensinada e praticada. A alfabetização, portanto, é esse processo de transição e ampliação, no qual os conhecimentos prévios da criança, tanto os conceituais sobre o mundo quanto os textuais construídos na oralidade, são mobilizados e ressignificados no contato com a escrita. Em última análise, a verdadeira alfabetização não se contenta em ensinar a decifrar códigos; seu objetivo maior é emancipar o indivíduo, capacitando-o a ler o mundo e a escrever a sua própria história, tornando-o um cidadão crítico, reflexivo e plenamente inserido na cultura letrada.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; LEAL, Telma Ferraz. Em busca da construção de sentidos: o trabalho de leitura e produção de textos na alfabetização.

FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1979.

SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, n. 25, p. 5-17, 2004.

VAL, Maria da Graça Costa; BARROS, Sônia Maria de. Crianças não-alfabéticas ditam textos instrucionais? In: LEAL, T. F.; BRANDÃO, A. C. P. (Orgs.). Produção de textos na escola: reflexões e práticas no ensino fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

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