12/10/2025

A Abordagem Reggio Emilia: Filosofia, Direitos e Protagonismo Infantil na Educação.

                                                                                                          Ivan Carlos Zampin;     Elza Maria Simões;

 

A Abordagem Reggio Emilia destaca-se no cenário mundial como uma filosofia educacional profundamente inovadora e humanista, fundamentada no respeito incondicional à criança como um ser protagonista de sua própria história, ativo, investigativo e portador de direitos. Originária da cidade de Reggio Emilia, no norte da Itália, essa perspectiva floresceu no período pós-Segunda Guerra Mundial, impulsionada pelo desejo da comunidade local de construir um futuro novo e mais justo a partir da educação. Sob a liderança visionária do pedagogo Loris Malaguzzi, a rede municipal de creches e pré-escolas tornou-se um farol internacional, inspirando educadores em todos os cantos do globo. O eixo central dessa metodologia é a imagem de uma criança potente, rica em recursos, curiosa e capaz de construir conhecimento de forma contínua, por meio de um diálogo intenso e permanente com o ambiente, os adultos e seus pares.

Na essência da Abordagem Reggio Emilia, encontra-se uma visão revolucionária da infância. A criança é compreendida não como um "vir a ser", um projeto inacabado, mas como um cidadão de direitos no presente, um indivíduo competente, criativo e dotado de cem linguagens, cem mãos, cem pensamentos. Essa concepção exige um olhar de respeito, atenção genuína e a criação de oportunidades concretas para que ela expresse suas ideias, sentimentos e suas complexas teorias sobre o mundo. O papel do adulto, especialmente o educador, transcende a função de instrutor para assumir a de um pesquisador, um documentarista, um facilitador e, sobretudo, um ouvinte sensível. Sua atuação é pautada pela mediação ética e pelo estímulo à investigação, rejeitando posturas tradicionais e verticalizadas de transmissão unidirecional de conteúdos predeterminados.

Um dos pilares mais revolucionários e poéticos dessa abordagem é, sem dúvida, o conceito das "cem linguagens da criança", termo cunhado por Malaguzzi e eternizado em seu famoso poema. Esta metáfora robusta destaca a multiplicidade de formas de expressão e de codificação do pensamento infantil. As crianças comunicam-se e aprendem não apenas pela fala e pela escrita, mas também por meio do desenho, da pintura, da escultura, da música, da dança, da dramatização, da construção e de tantas outras formas simbólicas. Cada uma dessas linguagens é um sistema cognitivo válido e poderoso. Ao legitimar o brincar, a experiência sensorial, a exploração estética e científica como caminhos legítimos e necessários para a aprendizagem, a abordagem desmonta qualquer hierarquia entre os saberes. Recusa-se, assim, a reduzir a infância a um mero período de "preparação para o futuro", defendendo com veemência a certeza de que toda experiência vivida no "aqui e agora" é profundamente significativa e constitutiva do ser.

O ambiente educacional ocupa, nessa filosofia, um lugar de extrema centralidade, sendo elevado à categoria de "terceiro educador", ao lado das crianças e dos adultos. Os espaços físicos, internos e externos, são cuidadosamente projetados e intencionalmente organizados para provocar descobertas, interações e perguntas. Privilegiam-se a beleza, a transparência, a luz, a liberdade de movimento e o acesso autônomo a uma vasta gama de materiais naturais e não estruturados. As paredes não são vazias; elas "falam" por meio da documentação pedagógica, exibida em painéis, com fotos, transcrições de diálogos e portfólios que contam a história dos processos de aprendizagem do grupo. Este ambiente, convidativo e desafiador, favorece a pesquisa em pequenos e grandes grupos, o diálogo e a colaboração, distanciando-se radicalmente do modelo tradicional de salas de aula com carteiras enfileiradas e do controle rígido do tempo e das ações.

Outro ponto de destaque que merece ser aprofundado é a prática da escuta ativa e o profundo respeito ao tempo interno de cada criança e do grupo. Diferente de um currículo fechado e pré-definido, os projetos de investigação, chamados de "projetos", nascem organicamente a partir dos interesses, das dúvidas, das hipóteses e das observações espontaneamente manifestadas pelas crianças no seu cotidiano. Um inseto que entra na sala, a sombra de uma árvore, o nascimento de um irmão, uma poça d'água no pátio, tudo pode se tornar o ponto de partida para uma longa e rica investigação. Os educadores, atentos a esses sinais, atuam como co-construtores da experiência. Eles não impõem respostas, mas sim provocam novas perguntas, fornecem materiais, ampliam as possibilidades de pesquisa e registram meticulosamente cada etapa. Esse registro, depois de interpretado, é "devolvido" às crianças na forma de documentação, servindo como um espelho que lhes permite rever, analisar, transformar e aprofundar suas próprias ideias. Nesse contexto, os processos ganham importância primordial sobre os produtos acabados. O valor educativo está intrínseco no percurso de criação, nas tentativas, nos supostos "erros" (vistos como trampolins para novas descobertas), nas negociações entre os pares e nas descobertas coletivas, e não apenas em um resultado final esteticamente perfeito ou correto.

A relação com as famílias e a comunidade é um dos pilares estruturantes e não negociáveis do trabalho em Reggio Emilia. Os familiares não são meros espectadores ou convidados esporádicos; são parceiros essenciais, corresponsáveis pelo processo educativo. Eles participam ativamente da vida escolar, colaborando na concretização dos projetos, discutindo as documentações, trazendo para dentro da escola seus saberes, suas tradições, suas profissões e suas expectativas. A gestão é democrática, com a participação efetiva de famílias, cidadãos e educadores nos conselhos escolares. Essa participação fortalece o tecido social e confere um sentido coletivo e plural à construção do conhecimento, transformando a escola em um verdadeiro espaço público de exercício da cidadania desde a primeira infância. A escola é vista como um organismo vivo, integrado e em constante diálogo com a cidade.

A documentação pedagógica, já mencionada, é uma marca registrada da abordagem e assume uma função que vai muito além de uma simples decoração de parede ou arquivamento. Ela é, antes de tudo, uma ferramenta de pesquisa, reflexão e profissionalização docente. Ao registrar sistematicamente por meio de anotações, fotografias, gravações de áudio e vídeo os diálogos, os processos criativos, as interações sociais e os avanços conceituais das crianças, o educador torna o aprendizado visível. Esta visibilidade permite ao educador compreender melhor a lógica do pensamento infantil, avaliar formativamente o percurso do grupo e replanejar suas intervenções. A documentação também alimenta a formação continuada dos profissionais, que refletem coletivamente sobre sua prática, e fortalece o envolvimento das famílias, que podem acompanhar de perto e se maravilhar com as complexas aprendizagens de seus filhos. Dessa forma, ela torna explícito e tangível o imenso valor atribuído ao trabalho com a infância.

Além dos aspectos práticos, a Abordagem Reggio Emilia sustenta-se em uma sólida base de princípios éticos e políticos. Valores como a solidariedade, a cooperação, o respeito à diversidade (seja cultural, de gênero, de capacidade), o direito à escuta e o reconhecimento da infância como uma fase essencial e dotada de significado próprio, e não como uma mera etapa preliminar da vida adulta, são pilares de sua filosofia. Em um mundo contemporâneo marcado por profundas desigualdades e por tendências utilitaristas que pressionam por uma escolarização precoce e acadêmica, a filosofia de Reggio Emilia ergue-se como uma trincheira de defesa da infância em sua dignidade, pluralidade e singularidade. Ela promove, na prática, uma educação que não apenas humaniza, mas que também forma sujeitos críticos, criativos e capazes de viver democraticamente.

A prática da observação sistemática e da reflexão coletiva entre os educadores é um motor constante de renovação da prática. Reuniões de equipe são espaços privilegiados para a análise da documentação, onde os professores socializam suas observações, interpretam os significados por trás das ações das crianças e debatem as possíveis direções que um projeto pode tomar. Esse processo de escuta também entre adultos permite que o currículo emergente seja constantemente reelaborado, respondendo com sensibilidade e precisão às necessidades, perguntas e curiosidades que brotam do grupo. A flexibilidade curricular é, portanto, uma característica marcante e intencional, opondo-se frontalmente à rigidez de programas pré-definidos que ignoram as singularidades, os contextos e os ritmos das crianças. Nesse ecossistema educacional, o "erro" é desdramatizado e visto como uma oportunidade valiosíssima de aprendizado, e as hipóteses infantis, por mais fantásticas que possam parecer, são valorizadas como teorias válidas que merecem ser testadas, validadas, refutadas e exploradas em toda a sua profundidade.

A integração entre arte e ciência, entre o pensamento lógico e o pensamento analógico, é outra marca distintiva do ambiente educacional reggiano. Os "ateliers" são espaços oficina ricamente equipados com materiais de artes visuais não são atividades extras, mas o coração pulsante da escola. Eles são orientados por um profissional especializado, o "atelierista", que possui profundo conhecimento sobre linguagens visuais e materiais. O atelierista trabalha em parceria com os educadores, auxiliando as crianças a materializarem suas ideias, hipóteses e narrativas por meio de diferentes técnicas, ferramentas e suportes. Essa vivência estética intensa não é um fim em si mesma; ela aprofunda a capacidade de simbolização, aguça o pensamento crítico e divergente, e desenvolve a sensibilidade, formando indivíduos mais conscientes, criativos e capazes de encontrar soluções inovadoras para os problemas complexos da vida.

A organização do tempo é outro elemento cuidadosamente planejado para sustentar a profundidade das investigações. O tempo é entendido como um aliado, e não como um inimigo a ser controlado. Evita-se a fragmentação do dia em blocos curtos e desconexos de atividades. Em vez disso, privilegiam-se longos períodos de trabalho ininterrupto, permitindo que as crianças se envolvam profundamente em seus projetos de investigação, sem que sejam interrompidas por transições bruscas. A rotina é planejada para favorecer a continuidade e a fluidez dos projetos, respeitando os ritmos individuais e coletivos. Dessa forma, evita-se a superficialidade que muitas vezes caracteriza currículos extensos, e estimula-se a concentração, a persistência, a imersão e o engajamento genuíno com os próprios aprendizados. O tempo é dado para que as ideias amadureçam, para que as construções sejam desfeitas e refeitas, para que o pensamento complexo possa florescer.

A Abordagem Reggio Emilia também coloca uma forte ênfase na formação de grupos e na valorização do coletivo. As crianças são organizadas em pequenos grupos para a maior parte das atividades, o que favorece a troca de pontos de vista, a negociação de significados, a resolução colaborativa de conflitos e a construção compartilhada do conhecimento. A escola é vista como um sistema de relações e conexões, onde a identidade individual se constrói na relação com o outro. O conflito, nessa perspectiva, não é suprimido, mas é encarado como uma oportunidade de crescimento social e moral, mediado com cuidado pelo educador. Aprendendo a ouvir e a ser ouvido, a argumentar, a ceder e a cooperar, a criança vivencia na prática os fundamentos de uma vida democrática.

Outro aspecto fundamental é a valorização do contexto e da cultura local. A cidade de Reggio Emilia é incorporada ao currículo como uma extensão da sala de aula. Praças, parques, mercados, teatros e museus são frequentemente explorados pelas crianças, que desenvolvem um sentimento de pertencimento e de identidade com o seu território. A escola abre-se para a comunidade e a comunidade adentra a escola, criando um rico diálogo entre o conhecimento local e os saberes universais. Essa integração reforça a noção de que a aprendizagem não acontece apenas dentro de quatro paredes, mas é um processo contínuo e ubíquo, permeado pela cultura e pelo ambiente que cerca a criança.

Em síntese, a Abordagem Reggio Emilia propõe uma ruptura radical e inspiradora com os paradigmas educacionais convencionais. É um convite a investir, com coragem e confiança, na potência criadora e cognitiva das crianças. É uma aposta no diálogo, na escuta e na investigação compartilhada como as ferramentas mais poderosas de aprendizagem. É a valorização da expressão múltipla, simbólica e poética em suas cem linguagens. É, acima de tudo, um compromisso ético e político com a construção coletiva de sentido e com o exercício da cidadania desde o início da vida. Neste espaço, todos aprendem com todos: crianças aprendem com adultos, adultos aprendem com crianças e as crianças aprendem umas com as outras. Cada voz, por menor que seja, é considerada importante e única.

Ao adotar os princípios dessa abordagem, os educadores são desafiados a abrir mão de certezas absolutas e de verdades prontas, a cultivar uma postura de humildade intelectual e de curiosidade permanente. São convidados a escutar com atenção verdadeiramente interessada, a observar com olhos que veem além do óbvio e a confiar tanto na potência transformadora das crianças quanto na própria capacidade de se reinventar e renovar os sentidos da educação. Reggio Emilia não é um método a ser copiado, mas sim uma filosofia de vida e uma referência ética que inspira a criação de contextos educativos mais democráticos, belos e significativos, onde a infância é honrada em toda a sua plenitude e esplendor.

Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio e Gestor Escolar.

Elza Maria Simões: Bacharel em Administração, Professora de Matemática, Matemática Financeira, Pedagoga, Especialista em Educação Especial.

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