Simbolismo, na contramão da Realidade e da poética do Belo
Resumo: O presente artigo visa analisar o surgimento do movimento simbolista no final do século XIX e sua ruptura com os padrões de estética poética que vigorava desde a literatura clássica. Deste modo, Baudelaire toma pra si os rumos de uma nova poética. A poética do sujo e do feio. Vislumbrando quebrar os conceitos austeros de feio e bonito, bom e mal. A poesia simbolista vai, então, extrair beleza em espaços diversos, traduzindo as ideias de relatividade que permeavam este período. Veremos neste estudo que o movimento surge para se opor aos canônes vigentes. Renegando, assim, o mundo do Realismo, objetivo e racional, e a poesia do “Belo” e do “Bom”; buscando voltar a poética para o lado mais íntimo e sentimental do poeta. Portanto, tentaremos analisar o simbolismo que surge neste momento, através da poesia da poesia de Baudelaire, para, então, sondar o movimento que se instaura em oposição aos movimentos que retratavam a realidade e seguiam a estrutura poética consagrada.
Palavras-chave: Simbolismo. Charlie Baudelaire. Feio/Belo.
O painel da Europa do século XIX era o de confronto entre três correntes ideológicas: a do absolutismo que atendia aos privilégios da nobreza e visava restabelecer o passado anterior à Revolução Francesa; a do liberalismo ligada aos interesses da burguesia, que visava estimular as tentativas de derrubar os regimes absolutistas e implantar políticas capitalistas; e a socialista ligada às classes operárias e aos trabalhadores rurais, que conduzia a luta por salários, direitos básicos e condições de vida melhores. O conflito dessas correntes influenciou mudanças significativas neste período, como o avanço científico e tecnológico e a corrida desenfreada do capitalismo industrial. O movimento simbolista surge durante estes conflitos, precisamente em 1857, com Charles Baudelaire e sua obra As flores do mal, e se desenvolve na contramão da ciência, da objetividade e do Realismo.
As flores do mal de Baudelaire vão então causar um enorme escândalo, pois mexe não só com a sociedade em geral, como também com o cerne da poesia, por meio de temáticas que antes eram tabus. Tendo como cenário Paris do século XIX, o poeta fala da monotonia dos tempos modernos e de como isso lhe causa uma solidão existencial.
Baudelaire, então, assume a responsabilidade de mudar os rumos da poética daquela época. Vislumbrando novas concepções, o autor de As flores do mal rompe com a temática clássica de poesia, que atribuía beleza à forma harmoniosa dos versos. Logo, o conceito de beleza tradicional é questionado por Baudelaire, pois para ele era preciso extrair beleza da miséria, do feio e da coisa ordinária. O autor atribui ao belo diferentes dimensões, fazendo com que este seja de difícil definição, se opondo a ideia de um belo “único e absoluto”. Isso porque, para o autor, o belo é constituído de um “elemento relativo” que será instituído conforme a circunstância histórica e social. Portanto, Baudelaire afirma que o belo é formado por: “um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão” (BAUDELAIRE, 1996, p. 10).
O elemento relativo que Baudelaire atribui ao belo é pertinente ao pensamento moderno, já que a velocidade e a transitoriedade das coisas e dos fatos são preponderantes nesta sociedade. Assim, a realidade é mutável e tudo que nela exista também o será, inclusive a poesia, a arte e o belo, como afirma o autor: “o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1996, p. 24).
Captar a beleza em diferentes espaços e dimensões torna-se primordial na poesia deste momento e o Simbolismo cumprirá, então, o papel de expressar esta poética do sujo e do lixo, demonstrando a realidade das ruas europeias pós-revolução. Desta maneira, Walter Benjamin atesta que nos tempos modernos: “os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heroico” (BENJAMIN, 1994, p. 78).
O Simbolismo vai traduzir as muitas dimensões da realidade, através de diferentes concepções de beleza, verdade e espaço. Desta forma, os poetas simbolistas não vão se limitar à beleza única, à verdade absoluta e à realidade fixa. A preocupação destes artistas consiste em expressar questões atemporais, não geográficas e não sectárias. Renegam, assim, a razão como princípio organizador do mundo. Fazem isso, contrariando as perspectivas realistas e parnasianas, que consistiam em refletir a realidade de maneira racional e objetiva, e recusando o idealismo romântico.
As autoras Ana Chiara e Fátima Cristina Dias Rocha, em apresentação ao livro Literatura Brasileira em Foco V, afirmam que o Realismo: “além de valorizar a razão e os critérios objetivos de seleção e arranjo da matéria narrada (método experimental em prosa), privilegiava o equilíbrio e o domínio da emoção (na poesia)” (CHIARA e ROCHA, 2012, p. 7). Logo o Realismo caracteriza-se pela objetividade e racionalidade dos fatos narrados. Esta racionalização é norteada pelo Positivismo. O Parnasianismo, outra manifestação literária que surge no século XIX e convive com o movimento Simbolista e o Realista, representou na poesia o espírito positivista da época e também fez oposição à ideologia do Romantismo. Este movimento caracteriza-se pelo respeito às regras de versificação, pela rima rica, pela preferência por estruturas fixas, e pela preocupação em recuperar os valores estéticos da Antiguidade Clássica.
Através da breve análise que fizemos acima, concluímos que o Simbolismo surge se opondo às correntes literárias que convivem na Europa do século XIX, porque transmite através de sua poesia uma realidade díspar da racional e objetiva retratada pelo Realismo (na prosa) e o Parnasianismo (na poesia). Além de estabelecer uma estética que se opõe a destes movimentos.
Desta maneira, a postura dos simbolistas em relação ao real e o belo deve-se ao progresso tecnológico e científico, que intensifica a desilusão com o mundo moderno, deixando o homem cada vez mais só, individualista, e à procura de explicações para questionamentos como: a existência humana, o surgimento da vida, os conceitos de verdade e realidade. Logo, o movimento forja indagações que irão nortear os movimentos futuros. Conforme afirma Vera Lins:
O simbolismo, como o romantismo, apoia-se numa concepção trágica da condição humana, que, na modernidade, coexiste com um relativismo cético, princípio da sociedade liberal, para o qual não há verdade absoluta (LINS, 2009, p. 99).
Os símbolos são a expressão da condição humana, que naquele momento era trágica e nefasta. Afinal, o panorama urbano pós Revolução Industrial, que incentivou o consumismo desenfreado como forma de encontrar o paraíso e a produção em massa, era ao mesmo tempo rico e miserável. Com isso, como explica Álvaro Cardoso Gomes, “A obsessão pelo consumo, pela produção desenfreada de novidades, leva ao modismo, ao princípio de que tudo é transitório, inclusive os critérios de gosto e de arte” (GOMES, 1994, p. 9). O homem passa a sentir o mundo segmentado, pautado em um constante movimento das coisas, onde tudo é passageiro, inclusive os valores morais, construídos ao longo da história por instâncias como a Igreja e a Família. Desta maneira, conforme o homem vai tendo consciência de sua condição no mundo, de que tudo é efêmero e de que não existe verdade ou realidade fixa, ele percebe que sua existência também é passageira. Sendo assim, o espírito da decadência se instaura devido às mazelas urbanas atribuídas à Revolução Industrial e à incerteza do homem quanto à ciência e à razão. Como atesta Gomes:
O homem que acreditava ter acesso aos segredos do universo, via razão e via progresso, vê de repente que tudo não passa de ilusão, que o universo é regido por forças incontroláveis que ele desconhece completamente. Esse sentimento leva-o à descrença, ao desalento e faz com que adote uma postura de desprezo em relação a tudo que lembra o mundo burguês da luta, da operosidade, da conquista (GOMES, 1994, p.11).
O homem deste período vai renegar a sociedade materialista em prol do cultivo dos sentimentos mais íntimos. É na solidão que o homem decadente encontra conforto e possibilidade de recriar o mundo por meio da arte. O poeta Paul Verlaine expõe sua nostalgia com o período através da morbidez de seus versos que, conforme Gomes pareciam desejar que “os valores da civilização ocidental caíssem por terra”, como ilustram os versos de Verlaine citados por ele:
Eu sou o Império no fim da decadência,
Que olha passar os grandes Bárbaros brancos
Compondo acrósticos indolentes
Num estilo de ouro onde o langor do sol dança (VERLAINE apud GOMES, 1994, p. 11).
Este homem do fim do século XIX recusa a luta e a ação e dedica-se a uma vida intimista e privada. Deste modo, fazia-se necessário repensar os conceitos até então preestabelecidos. Afinal, a realidade e a razão não faziam mais sentido e criar novos mundos e novas realidades por meio da introspecção e do individualismo tornava-se uma alternativa possível e bem mais interessante. De acordo com Ana Balakian, foi devido ao espírito decadente que os simbolistas imprimiram a sua arte um caráter filosófico. Diz ela:
Seu maior campo de influência estava nas sugestões que deixou, através de sua conduta pessoal e de suas obras para precisar o espírito “decadente”: a conduta retraída, a preocupação com o mistério da vida, a inutilidade do livre-arbítrio, a iminência da morte na existência diária do homem, o abismo de nossas incompreensões – mas, acima de tudo, a consciência do papel do artista, o consolo das artes como o único meio contra o demolidor acaso, a permanência do homem através da emissão de um pensamento. Aceitando esta posição, os simbolistas demonstraram um temperamento filosófico mais profundo do que Verlaine ou Dorian Gray de Oscar Wilde (...) Maeterlinck e Laforgue deram o tom à nova metafísica, que consistia numa elevada consciência do vazio em que o homem navega cegamente, sem saber de onde veio nem para onde vai (BALAKIAN, 1985, p. 21).
Esse espírito decadente ao qual Balakian se refere não é uma novidade do final do século XIX. Na verdade, ele foi inventado/gerado durante o Romantismo, quando os escritores foram tomados pelo culto dos sentimentos mais sombrios, ou seja, aquilo que se convencionou chamar de “mal do século”. Assim, Gomes vai dizer que entre o poeta do mal do século e o decadente simbolista há grande semelhança, no entanto, “o primeiro é todo emotivo e, por vezes, procura na mulher, no suicídio, um lenitivo para existência. Já o segundo é frio, racional e mesmo cínico: despreza o amor e vive artificialmente” (GOMES, 1994, p. 13). Sem contar as diferenças conceituais explicitadas por Gomes, percebe-se que há um parentesco irrefutável entre o Simbolismo e o Romantismo, tendo em vista o idealismo e o espiritualismo que ambos traduzem em sua poética. Retomando Balakian, podemos perceber isso quando ela afirma que, durante o Romantismo, “a poesia se apropriou do terreno do místico como uma espécie de sucedâneo da religião: os românticos buscavam analogias ou imitações do infinito” (BALAKIAN apud GOMES, 1994, p.14).
A semelhança entre os dois movimentos é evidenciada em Emmanuel Swedenborg, escritor do século XVIII que escreveu o livro, De coelo et de inferno (Sobre o céu e o inferno) (1758), que se tornou um guia para a filosofia romântica e posteriormente para a simbolista. Esta obra tem natureza mística, porque coloca em evidência a complexidade das relações do mundo terreno e do celeste, que ele cunhou de “correspondências”. Essas “correspondências” vão guiar o modo de vida romântico, que tentava negar o mundo material em prol do sujeito e do espírito.
As correspondências vão ser o cerne da poética simbolista, pois os poetas deste movimento acreditavam, como o místico sueco, que tudo no mundo terreno, a natureza e os seres, teria um sentido simbólico e que também manteriam uma correspondência com o mundo celestial. Logo, este espiritualismo encontrado nas correspondências de Swedenborg vai assumir novos significados com os simbolistas. Para eles, o espiritualismo materializa-se contra o cientificismo e o positivismo e não precisa de uma morada celestial, sim de uma unidade material e espiritual na Terra. Por meio da correspondência entre o espiritual e o material, os poetas simbolistas vão buscar a essência das coisas que se esconde por detrás das aparências. Baudelaire poetizou a temática das correspondências em sua obra As flores do mal, no poema de abertura da coletânea:
Correspondências
A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam às vezes sair confusas palavras;
O homem aí passa através das florestas de símbolos
Que o observam com olhares familiares.
Como os longos ecos que de longe se confundem
Numa tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem.
Há perfumes frescos como carnes de crianças,
Doces como os oboés, verdes como as pradarias,
__ E outros corrompidos, ricos e triunfantes,
Tendo a expansão das coisas infinitas,
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
Que cantam os transportes do espírito e dos sentidos (BAUDELAIRE, 1961, p. 13).
Através das correspondências os simbolistas tentavam traduzir o misterioso e o desconhecido, retomando assim o Romantismo alemão de Novalis, por exemplo, que considerava o mundo real apenas aparência e o mundo invisível única realidade possível. Deste modo, Lins relata que: “Para Novalis, a interiorização leva a uma volta ao exterior, mas a um mundo recriado e a um eu transcendental”. Sobre a influência do Romantismo alemão no movimento simbolista, ela afirma que para o autor, “a noção de crítica está fundada sobre a visão trágica do romantismo alemão, principalmente Novalis e Schlegel, que vai ecoar na virada do século” (LINS, 2009, p. 102).
A autora, portanto, atesta que há influência do Romantismo alemão no Simbolismo, porque o Romantismo que nasce no final do século XVIII, na Alemanha, e se propaga por todo o Ocidente se opondo ao culto da Razão perpetrado pelo Iluminismo, tem por premissa redescobrir o universo do desconhecido, o individualismo e as múltiplas realidades existentes. Assim, é este Romantismo que vai, de certa maneira, abrir as portas para que o sujeito tenha sua própria interpretação do mundo exterior. Portanto, há uma forte ligação do Simbolismo com o Romantismo alemão. Lins vai dizer ainda que o fim do século XIX foi um “momento de retorno” da consciência de que há uma “cisão do eu com o mundo”, conforme era feito no “barroco e no primeiro romantismo alemão” (LINS, 2009, p.104 e 105).
Notamos que o Simbolismo, sob a influência da ideia de correspondências de Swedenborg e do Romantismo alemão, vai ressignificar a visão trágica do mundo e da realidade, porque percebe nisso a única possibilidade de combater o pragmatismo positivista e o ceticismo. Sendo este último aquilo que se exime de qualquer manifestação por não acreditar em mais nada.
O mundo torna-se ilusão e exílio. Há, assim, uma aceitação da condição humana como trágica e finita, que confere à arte o papel de redentora daquela realidade nebulosa ou “sombria”, como Hannah Arendt cunha os períodos de tempo em que a humanidade precisou se omitir do “âmbito público” e deixar de “pedir qualquer coisa à política”, porque esta não atendia a seus “interesses vitais” e nem concedia a “liberdade pessoal” necessária (ARENDT, 2008, p. 19). Nesses tempos sombrios aos quais a autora se refere, fazia-se necessário fugir do mundo real e da esfera pública e encontrar novos mundos, onde fosse possível refletir sobre todas as aflições da vida humana. E é esta fuga que se transfigurava em pintura, poesia, teatro e em qualquer manifestação artística e que o Simbolismo tenta representar através das suas correspondências.
Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo ultrapassá-los e, por assim dizer, procurar por trás deles – como se fosse apenas uma fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder -, chegar a entendimentos mútuos com seus companheiros humanos, sem consideração pelo mundo que se encontra entre eles (ARENDT, 2008, p. 19).
Sobre a fuga do âmbito público, Arendt explica que Heidegger e outros filósofos já abordaram o assunto e que o alemão tratou em seu livro O ser e o tempo (1927) com especial precisão. Ele descreve a existência humana como submissa ao âmbito público, o qual decide “todos os aspectos da existência cotidiana, antecipando e aniquilando o sentido ou sem-sentido de tudo que o futuro pode trazer” e afirmando que:
não há escapatória a essa ‘trivialidade incompreensível’ desse mundo cotidiano comum, a não ser pela retirada para aquela solidão que os filósofos, desde Parmênides e Platão, sempre contrapuseram ao âmbito político (ARENDT, 1985, p. 8-9).
É também através da fuga do âmbito público que os simbolistas vão se utilizar de imagens e símbolos para estabelecer correspondências com outras realidades. Logo, os mitos serão utilizados pelo movimento para pensar a condição humana como uma condição trágica. Segundo Lins, “todos os mitos foram utilizados: Salomé, Lohengrin, Pã e Syrinx, Diana” (LINS, 2009, p.104). A figura de Salomé encontra lugar privilegiado na produção artística do fim do século XIX, sendo revisitada por artistas como: Gustave Moreau (pintura); Richard Strauss e Jules Massenet (música); Heinrich Heine, J. K. Huysmans, Gustave Flaubert, Stéphane Mallarme, Théodore de Banville, Jules Laforgue e Oscar Wilde (literarura). A dançarina sensual representará a morte, o mal e a fatalidade, a encarnação da beleza feminina simbolizará todos os conceitos decadentistas, sendo uma verdadeira musa decadente. O poeta Stéphane Mallarme recriou sua Salomé em seu poema Hérodiade, que, para Balakian, será importante como uma atitude:
(...) simbolista enquanto o narcisismo obsessivo, não recompensador porque não tem saída, se torna um dos motivos mais salientes do espírito ‘decadente’, acentuando não só o medo de amar e da sensualidade, mas também o fracasso dos substitutos espirituais. Veremos notáveis exemplos desta atitude em Laforgue, Villiers de I’Isle-Adam e no teatro fin de siècle (BALAKIAN, 1985, p. 65).
Essa atitude evidencia a revolta contra a moral burguesa hipócrita, representada pelo dandy o homem decadente, mas que cultiva prazeres aristocráticos e se distancia dos princípios morais da sociedade burguesa; e pelas mulheres marginalizadas, como a prostituta, a lésbica e a femme-fatale, mulher diabólica, cruel e sensual, que neste contexto é, muitas vezes, a imagem mítica de Salomé. Mais do que esta mulher diabólica e perversa, a mulher do decadentismo, simbolizada por Salomé, denota a mulher livre que emerge na modernidade.
Anda pelas ruas e é cobiçada pelos homens, se veste luxuosamente, se maquia, se perfuma e com isso fascina, porém repele por ser diferente da mulher tradicional. Conforme Claudia Oliveira em sua obra As pérfidas Salomés, estas Salomés representavam uma transformação no estereótipo das mulheres convencionais daquela sociedade e da heroína clássica:
As Salomés de Gustave Moreau eram alvas como as deusas clássicas, mas calçavam sandálias com saltos, suas faces eram maquiadas e seus corpos adornados. Sua anatomia unia o ideal da beleza clássica, encarando o fascínio do artista simbolista e decadente pelos corpos ondulantes e olhos magnetizantes (OLIVEIRA, 2008, p. 18).
Voltando a Baudelaire, como já vimos, o autor assume a responsabilidade de mudar a estética clássica da poesia e esta mudança vai romper não só com a forma dos versos preestabelecida, como também com as concepções ditadas por instituições moralistas austeras. Deste modo, temas como a sexualidade, a morte, o mal e o inferno, serão constantes na poesia decadentista/simbolista. Era, então, necessário mexer com as instâncias consagradas, que sempre reprimiram o desejo e a expressão dos indivíduos, através de verdades que não mais respondiam às questões existenciais do homem do fim do século.
Nelson Levy, em seu artigo intitulado “Princípio da Liberdade”, que se encontra no livro O Desejo, de Adauto Novaes, atesta que a liberdade só é completa quando um indivíduo é “dotado de autonomia” e que o desejo é “lugar privilegiado da liberdade, pois se constitui pela autonomia criativa e legisladora do ser” (NOVAES, 1990, p. 158). E é essa liberdade do desejo, que recebe da tradição cristã o estigma de falsa liberdade, de força irracional, que deve ser controlada. O discurso bíblico, portanto, construiu o livre arbítrio e suas consequências, por meio do “pecado original”, cometido por Adão e Eva.
A autonomia do desejo, justamente por escapar o controle das leis objetivas do Senhor, é caracterizada pela alegoria bíblica como uma falsa autonomia, pois não seria imanente à criatura, mas implantada por uma pretensa força cósmica a-racional. Assim, o desejo seria fonte de escravização humana a uma força do Mal. Enquanto conformidade com as leis objetivas do Senhor, essa sim, seria a fonte de uma liberdade adquirida pela redução de todo Bem ao reino das necessidades objetivas satisfeitas (LEVY, 1990, p. 159).
A liberdade do desejo, que se aplica a qualquer manifestação do sujeito, recebe caráter negativo, construindo uma sociedade amedrontada pelo mal e pelo conceito de pecado. Por conseguinte, a poética do mal elaborada por Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Poe e outros poetas contemporâneos a estes, vai chocar a sociedade moralista, tradicional e transformar a estética poética clássica.
Deste modo, outro mito é aqui revisitado, o do pecado original, que seria o causador de todos os males da humanidade: pecado, sofrimento, morte, doenças e quaisquer adversidades de ordem natural. A teologia cristã, então, vai personificar o mal através da figura do Diabo. Este é a forma concreta da revolta e da desobediência. A imagem de Satã encontra representação na poética maldita, pois configura a imagem da rebeldia que, neste contexto, simboliza o sentimento dos poetas. Isso porque a personagem de Satã age emocionalmente, sem pensar nos limites e na razão, por isso contesta os dogmas de Deus. Segundo Georges Bataille, em O Erotismo:
Uma ação criminosa infame se opõe à passional. A lei rejeita ambas, mas a literatura, mais humana é o lugar privilegiado da paixão. Do mesmo modo, a paixão não escapa à maldição: só uma “parte maldita” esta destinada àquilo que, numa vida humana, tem o sentido mais carregado. A maldição é o caminho da benção menos ilusória (BATAILLE, 1987, p. 27-28).
O mal torna-se na literatura a possibilidade de autonomia do sujeito. A expressão do mal é para os românticos, decadentistas e simbolistas, símbolo da contestação e da insatisfação. Pois o “lado do Bem é o da submissão, da obediência. A liberdade é sempre uma abertura à revolta, e o Bem está ligado ao caráter fechado da regra” (BATAILLE, 1987, p. 176). Logo, o poeta das Flores do mal vai expressar sua poética através do símbolo do mal e de Satã, em “As litanias de Satã”. O autor ironiza as litanias cristãs (forma erudita das preces e orações dirigidas aos santos e à Virgem para que roguem a Deus pelos humanos pecadores) dirigindo seu louvor à encarnação do mal, Satã. O poeta mostra que o mal não está no lugar ao qual a Igreja o condenou, mas que está no lugar que realmente cabe a ele, no homem, pois todo homem é ao mesmo tempo o bem e o mal, o certo e o errado, a razão e a emoção. Abaixo temos alguns versos do poema referido:
As litanias de Satã
Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,
Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,
E que, vencido, sempre te ergues mais brutal
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas,
Charlatão familiar das humanas insânias
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria! (BAUDELAIRE, 1961, p. 13)
Verificamos que o Simbolismo surge em meio a turbulentas transformações ocasionadas pelo advento da modernidade e se instaura contra os conceitos de belo, realidade e verdade instituídos ao longo da história e que ganham peso sob a égide da burguesia finissecular. Visando transformar a poética clássica e as concepções tradicionais moralistas daquela sociedade, o Simbolismo faz uma verdadeira revolução no campo literário do final do século XIX e revela através dos símbolos a insatisfação com a forma consagrada da poesia, da arte, da sociedade e da religião.
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