Primeiras impressões sobre os Crimes Licitatórios trazidos pela Lei 14.133/21
Primeiras impressões sobre os Crimes Licitatórios trazidos pela Lei 14.133/21
VINÍCIUS SCATIGNO LAPETINA[1]
DAVI LAFER SZUVARCFUTER[2]
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As principais mudanças trazidas pela Lei 14.133/21 para o Direito Penal. 3. Conclusão. 4. Referências.
RESUMO: Em 1º de abril de 2021 entrou em vigor no Brasil a Lei 14.133/21, que alterou a Lei 8.666/93. Ante a revogação de todos os tipos penais relacionados aos denominados crimes licitatórios previstos na Lei 8.666/93, assim como a introdução de outras questões relacionadas ao Direito Penal, imperiosa a realização de uma análise dessas mudanças.
PALAVRAS-CHAVE: Crimes licitatórios. Lei 8.666/93. Lei 14.133/21. Direito Penal.
ABSTRACT: On April 1st, 2021, Law 14.133/21 came into force in Brazil, which amended Law 8.666/93. In view of the repeal of all criminal types related to the so-called bidding crimes provided for in Law 8.666/93, as well as the introduction of other issues related to Criminal Law, it is imperative to carry out an analysis of such changes.
KEYWORDS: Bidding crimes. Law 8.666/93. Law 14.133/21. Crimnal law.
1. Introdução
Em 1º de abril de 2021 entrou em vigor a Lei 14.133[3], que alterou a Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei 8.666/93[4].
Ainda que essa Lei possa representar avanços para o Direito Administrativo, o que deverá ser analisado nos próximos dois anos até a sua entrada em vigor, fato é que, para o Direito Penal, esta já produz efeitos[5] e traz mais um exemplo do pensamento sofístico do legislador brasileiro: o recrudescimento penal como tentativa de solução de questões sociais[6].
Diante desse cenário, o presente artigo tem como escopo analisar e tecer breves comentários sobre as principais mudanças em âmbito penal trazidas pela Lei 14.133/21.
No que toca às regras processuais e procedimentais, a nova lei não apresentou inovações. Permanecem atendendo o processamento de crimes licitatórios as regras gerais previstas no Código de Processo Penal e legislação adjetiva complementar.
Quanto ao direito material, verifica-se a criação de novas figuras delitivas. Esses delitos foram introduzidos no rol de crimes previstos no Código Penal, dentro do capítulo Dos Crimes Contra a Administração Pública, e compõem os novos artigos 337-E ao 337-O.
2. As principais mudanças trazidas pela Lei 14.133/21 para o Direito Penal
No que toca às mudanças trazidas para o Direito Penal pela Lei 14.133/21, a primeira e notória alteração diz respeito ao aumento da pena mínima prevista para boa parte dos tipos penais, assim como a alteração da modalidade de pena, que na Lei 8.666/93 fazia previsão de detenção e, hoje, é prevista a reclusão.
O endurecimento das penas, notadamente nos crimes que passaram a ter a pena mínima de 4 (quatro) anos, revela a adoção de parâmetro apto a impedir a aplicação do Acordo de Não Persecução Penal (artigo 28-A, do Código de Processo Penal[7]), instituto recentemente inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 13.964/19, capaz de evitar o processamento de feitos criminais em situações de baixa e média gravidade penal.
O obstáculo trazido pela nova lei vai na contramão de uma tendência moderna de solução negocial de conflitos penais e revela-se incompatível com a atual ordem punitiva, na medida em que é possível realizar o referido acordo em casos de crimes considerados de natureza e gravidade similares, tal como nos casos do delito de corrupção.
Por sua vez, em observação às regras de aplicação de pena previstas no artigo 33 do Código Penal[8], a nova previsão de fixação de pena de reclusão, em substituição à pena detenção, permitirá, de agora em diante, a aplicação do regime fechado, incabível aos antigos crimes licitatórios. Essa mudança poderá culminar no encarceramento de um maior volume de pessoas, inexistindo, salvo melhor juízo, qualquer estudo prévio acerca do impacto carcerário[9].
Merece destaque, também, que a nova modalidade de pena possibilita, no curso de investigações criminais, a decretação de interceptação de comunicação telefônica e do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática de pessoas investigadas, uma vez que a Lei 9.296/96 prevê a adoção de tal medidas quando o delito investigado é punido com pena de reclusão[10].
Em relação aos tipos penais propriamente ditos, necessária a análise de correspondência entre os novos tipos penais criados pela Lei 14.133/21, com os da Lei 8.666/93, a fim de verificar a ocorrência de abolitio criminis, ou do princípio da continuidade normativa típica, tendo em vista a mencionada novatio legis in pejus[11].
Os tipos penais previstos na Lei 8.666/93 que mais davam causa a instauração de inquéritos policiais e formulação de denúncias eram aqueles apontados nos artigos 89 e 90. Tais figuras penais sofreram relevantes alterações e merecem destaque.
O caput do artigo 89, da Lei 8.666/93, ainda que alterada a redação e trocados os verbos nucleares, possui correspondência com o novo artigo 337-E, do Código Penal. Os verbos dispensar, inexigir e deixar de observar as formalidades legais do procedimento licitatório foram substituídos pelos verbos admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses legais. Pelo que se nota, o novo tipo penal é mais amplo, abarcando tanto as condutas do antigo tipo penal, como quaisquer outras relacionadas ao não atendimento das formalidades do procedimento licitatório.
Por se tratar de norma penal em branco, uma vez que é necessária a complementação por outras regras do Direito, importante será observar eventuais mudanças na legislação que regula as modalidades de contratação direta, o que poderá ensejar a descriminalização de condutas previstas na Lei 8.666/93.
Ainda sobre o artigo 89, da Lei 8.666/93, imperioso destacar que seu parágrafo único, que tratava da responsabilização do particular em conluio e beneficiado pelo ato do Administrador Público, não foi incorporado pelo artigo 337-E, do Código Penal.
Resta a dúvida, neste ponto, se tal omissão legislativa corresponderia à abolição do tipo penal, pois o caput do artigo 89 trata de crime de mão própria, dizendo respeito a condutas de agentes públicos, mostrando-se a redação do antigo parágrafo único o caminho da responsabilização criminal do particular pela participação no delito.
Entendemos, porém, não ter havido abolitio criminis, já que a maior abrangência conferida ao artigo 337-E abarca a figura do antigo parágrafo único do artigo 89, por meio do verbo dar causa.
Por sua vez, o artigo 337-F, do Código Penal, relacionado ao artigo 90, da Lei 8.666/93, não mais especifica o ajuste e a combinação como meios de frustração ou fraude do caráter competitivo licitatório. Como sua natureza era meramente exemplificativa, pode-se dizer que em sua essência o tipo não sofreu alteração.
Em relação aos demais delitos previstos na Lei 8.666/93, há uma mudança significativa no artigo 337-L, da Nova Lei. Isso porque o artigo 96, da Lei 8.666/93, possuía a conduta típica voltada a fraudes relacionadas a aquisição ou venda de bens ou mercadorias em detrimento da Fazenda Pública. Enquanto o novo tipo penal abarca também procedimentos licitatórios envolvendo a contratação de obras e serviços, tendo agora como vítima a Administração Pública (aí incluídas as autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações e consórcios públicos privados).
Prosseguindo, chama a atenção a exceção criada pelo legislador na redação do artigo 337-K, da Nova Lei (com correspondência ao artigo 95, da Lei 8.666/93), uma vez que trouxe como hipótese de ocorrência do tipo penal a sua forma tentada (afastar ou tentar afastar licitante). Nesse cenário, se verifica a exceção prevista no parágrafo único do artigo 14, do Código Penal[12], punindo a forma tentada do delito no mesmo patamar do crime consumado.
Outra relevante mudança trazida pela Lei 14.133/21 diz respeito aos delitos em que podem ser aplicadas multas pecuniárias, a sua forma de cálculo e o seu teto de aplicação. Isso porque, enquanto o artigo 99, da Lei 8.666/93, previa a aplicação de multa tão somente para os crimes previstos nos artigos 89 e 90, a Nova Lei prevê, em seu artigo 337-P, a aplicação a todos os novos tipos penais (artigos 337-E a 337-O). Da mesma forma, a multa prevista não mais será calculada sobre o valor da vantagem auferida ou potencialmente obtida, mas sim na forma geral do Código Penal, bem como estipulada em um patamar mínimo de 2% do valor do contrato licitado ou celebrado, não constando mais o teto anteriormente previsto de até 5%.
Como novo tipo penal, sem qualquer correspondência na Lei 8.666/93, foi criado o artigo 337-O, que trouxe o crime de omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse.
Chama a atenção o verbo entregar, que pode tornar o sujeito ativo do crime extremamente amplo, uma vez que cria a possibilidade de punição do agente que realiza a mera entrega do documento com omissões e modificações à Administração Pública, mesmo sem qualquer relação com os fatos, o que deverá ser objeto de ajuste e limitação pelo Poder Judiciário nos próximos anos.
Por fim, seguindo os anseios e mudanças trazidas pela Lei 12.846/13, e que deve ser objeto de grande atenção aos operadores do Direito, a Lei 14.133/21 trouxe em seus artigos a obrigatoriedade e relevância da existência de programas de integridade pelas empresas participantes dos certames públicos. A obrigação está prevista no artigo 25, §4º para a contratação de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o que representa um avanço, enquanto sua relevância está presente tanto por permitir a diminuição das sanções administrativas (artigo 163, parágrafo único), como para servir de critério de desempate (artigo 60).
3. Conclusão
Como uma primeira análise, pode-se concluir que, sob o aspecto penal, as mudanças trazidas pela Lei 14.133/21 ampliam a abrangência dos tipos penais e endurecem o combate aos crimes licitatórios pelo agravamento de suas penas e modalidade de cumprimento; assim como não permitindo a aplicação de benefícios legais decorrentes da denominada justiça negocial – que representam a evolução do Direito Penal, tido sempre como ultima ratio.
Entretanto, esse endurecimento punitivo parece ser desproporcional se comparado com outras tipos existentes no sistema penal.
De todo modo, no que toca aos novos tipos penais em si, há consideráveis mudanças, mas foi mantida a essência da Lei 8.666/93. Entende-se que o legislador brasileiro perdeu uma ótima oportunidade de deixar o rol de crimes licitatórios com aspecto moderno, refletido em condutas adequadas à atualidade. Ao que tudo indica, almejou-se, com o recrudescimento das penas, oferecer uma falsa resposta à sociedade de combate à criminalidade do colarinho branco.
4. Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2010.
KARAM, Maria Lucia. Criação de crimes não passa de fantasia. In O Estado de São Paulo, Caderno Justiça, 04/01/92
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2ª ed., Rio de Janeiro, Renovar. 2008.
[1] Aluno de mestrado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Aluno sob orientação do Professor Marco Antônio Marques da Silva). Advogado.
[2] Advogado.
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14133.htm#art193. Acesso em 17 de junho de 2021
[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em 17 de agosto de 2021
[5] Isso porque constou expressamente do artigo 193, inciso I, da Lei 14.133/2021, que estão revogados “os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei”.
[6] Sobre o tema são sábias as palavras da ex-juíza Maria Lúcia Karam: “Esta ideia, que reduz violência e o crime, além de ocultar o caráter violento de outros fatos mais graves – como a miséria, a fome, o desemprego – cria um clima de pânico, de alarme social, a que se costuma seguir um crescimento da demanda de mais repressão, de maior ação policial, de penas mais rigorosas. A intervenção do sistema penal aparece como a primeira alternativa, como a forma mais palpável de segurança, como forma de fazer crer que o problema está sendo solucionado” (KARAM, Maria Lucia. Criação de crimes não passa de fantasia. In O Estado de São Paulo, Caderno Justiça, 04/01/92. p.3).
[7] Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46, do Código Penal;
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
[8] Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.
[9] Claus Roxin: “O direito penal deve garantir os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens, na medida em que isso não seja possível através de outras medidas de controle sócio-políticas menos gravosas” (ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2ª ed., Rio de Janeiro, Renovar. 2008. p. 32).
[10] Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
[11] “Se houver um conflito entre duas leis, a anterior mais benigna, e a posterior, mais severa, aplicar-se-á a mais benigna: a anterior será ultra-ativa, por sua benignidade, e a posterior será irretroativa, por sua severidade” (BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 187).
[12] Parágrafo único - Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços