28/06/2019

Os desafios da escola contemporânea

 

            Pensar a escola e a educação básica dentro das limitações do entendimento humano sobre os diferentes tipos comportamentais é uma tarefa difícil de se chegar a um denominador comum. A escola, aparentemente tem deixado a desejar em inúmeros aspectos, dentro das expectativas governamentais, das famílias e dos profissionais da educação. Fala-se muito em uma “crise” na educação e constantemente vemos emergir teorias educacionais e políticas públicas centradas no aperfeiçoamento do processo de ensino e aprendizagem.

            Contudo, nesse contexto, a profissão docente passa por um alargamento das exigências de sua atuação e cada vez mais acaba por negligenciar suas necessidades enquanto trabalhadores que necessitam de um mínimo de suporte, financeiro, tecnológico e de material humano para uma execução satisfatória de suas funções. Todas as críticas sobre a (falta) qualidade do ensino recaem sobre os professores, sobre suas práticas pedagógicas e sobre sua formação.

            Diante de um quadro de constantes frustrações, vemos os índices de afastamentos dos professores da rede pública estadual por motivos de saúde mental crescendo nos últimos anos em Santa Maria- RS[1]. Entre os transtornos mentais citados, a depressão surgiu como uma grande preocupação do trabalhador docente. Seja pela carga horária excessiva de trabalho, as pressões das políticas públicas, baixos salários, seja pelo sentimento de frustração e incapacidade que acomete o professor da rede pública de ensino básico, a questão é que a depressão pode se tornar um fenômeno de distinção entre os professores e causadores de estigmas na profissão.

Nesse sentido, levando em consideração que a depressão se apresenta como um fenômeno social, uma vez que, segundo o Relatório de Saúde no Mundo de 2001, divulgado pela Organização Mundial da Saúde, a depressão está classificada em quarto lugar no ranque de doenças que ocasionam Anos de Vida para a Incapacidade (AVAI), sendo que a estimativa é de que até 2020 subirá para o posto de segundo lugar, perdendo apenas para doenças cardíacas e isquêmicas, é necessário pensar a escola dentro de um novo paradigma, assim como a sociedade que produz esse tipo de escola.

O autor Alain Touraine, nos apresenta um novo paradigma para pensar a sociedade em que vivemos hoje, com a ascensão do sujeito enquanto indivíduo e as múltiplas identidades, ou possibilidades de experiências proporcionadas pelo individualismo. Assim, Touraine (2007) argumenta que, o que mobiliza a sociedade hoje não são mais os movimentos coletivos, mas sim a construção da vida individual, de um sujeito que se entende portador de direitos, sobretudo o direito de ser um indivíduo. O que corrobora na fragmentação de identidades e em um indivíduo que se pretende ator/ sujeito de sua vida. Contudo, esse autor explica que a construção do sujeito individualizado não ocorre de forma homogênea e alheia aos processos de dominação.  O importante é ressaltar que o discurso dominante infere que na sociedade não há atores, apenas vítimas, o que é um equívoco se pensarmos nas conquistas de liberdades proporcionadas pelas novas formas de movimentos sociais que se desenvolveram e habitam nossa vida cotidiana (p. 129).

A formação de identidades fechadas, como as étnicas ou religiosas,  dificultam a produção de uma consciência de sujeito- ator, pois o indivíduo aparece diluído em uma identidade maior. Assim, para que se forme a consciência do sujeito, o autor elenca três componentes necessários:

 

“Uma relação a si mesmo, ao ser individual, portador de direitos fundamentais o que marca uma ruptura em relação à referência a princípios universalistas;... o sujeito não se forma a não ser entrando em conflito com as forças dominantes que lhe negam o direito e a possibilidade de agir como sujeito;... cada um, enquanto sujeito, propõe certa concepção geral do indivíduo. (Touraine, 2007, p. 130)

 

 

 

Ou seja, o sujeito não se manifesta através da execução de papéis esperados e estabelecidos a priori, como o de bom trabalhador, bom pai ou boa mãe (p.131), mas sim nas tentativas de fugir e de se libertar de tais papéis. Mais além, o autor reflete sobre a sociedade contemporânea ser refém de uma ideologia do consumo, a qual, se utiliza de meios de comunicação para manipular e deformar o sujeito presente em cada indivíduo.

A partir do pensamento desse autor, podemos refletir sobre o papel dos professores na escola. Como já falado, o acumulo de exigências sobre o professor sugere o desempenho de múltiplos papéis na escola. O professor tem que ser bom cuidador, tem que saber usar as novas tecnologias de ensino, estabelecer estratégias educacionais que atinjam um público variado, por etnia, classe social, gênero e necessidades especiais, além de criar uma forma de avaliação que contemple toda essa diversidade.  Com essa carga, a identidade docente oculta o ator social, o sujeito presente em cada professor.

Em uma visita de observação a cinco escolas públicas de Santa Maria, foi observado que as professoras (mulheres correspondem a 95% do corpo docente das escolas visitadas) tendem a exercer comportamentos semelhantes, o mesmo tipo de vestimenta, postura corporal e até mesmo, são acometidas pelos mesmos tipos de doenças, como tendinite, artrite e afonia. Poderia se dizer que o exercício da profissão docente infere características corporais e culturais nas professoras, sendo critérios de identificação até mesmo fora do ambiente escolar.

A profissão docente é tão impactante na vida das docentes observadas, que até mesmo na sua intimidade tendem a reproduzir um comportamento esperado na escola. Percebe-se ai, uma dificuldade de libertação dos papéis que lhe são atribuídos e até mesmo uma incapacidade aparente de manifestação de uma consciência de sujeito, uma vez que os papeis de docente, mãe e esposa se mesclam e determinam as ações dessas mulheres. Essa transposição de identidades acaba por causar frustrações também nos aspectos familiares e pessoais, uma vez que os papeis de esposa, mãe e professora se sobrepõem ao de mulher e sujeita.

A questão a ser pensada é justamente o tipo de escola que temos e o contraste com a formação de professores.  Touraine (2007) coloca que a escola deve ser um lugar de formação de atores sociais e, mais profundamente ainda, de sujeitos pessoais. (p.153), ou seja, as questões entendidas como do universo privado, devem ser discutidas na escola com o intuito de uma preparação para vida, além da preparação profissional e o exercício da cidadania.

Ao analisarmos os parâmetros curriculares nacionais, percebemos que a iniciativa do governo se encaminha nessa mesma direção, porém, na prática a escola tem uma visão muito arcaica e contraditória de como a escola deve contribuir na formação dos estudantes. Num momento em que mais se fala de diversidade e respeito as diferentes no interior na escola, é paradoxal pensar em um estabelecimento que visa um fim único e homogêneo a seus alunos, a preparação para o vestibular. O que leva a uma formatação homogênea da grade curricular para atender as demandas de conteúdos solicitados pelos vestibulares, negligenciando os estudantes que não compartilham do mesmo objetivo ou das mesmas condições de acesso ao ensino superior.

Talvez o grande paradigma da escola, é questiona-la como uma instituição ou não, a exemplo do que Dubet (1994) propõe. O tipo de prática pedagógica presente na escola é de uma Instituição escolar com objetivos e projetos educativos claramente definidos, para um público homogêneo e realizadas também por professores homogêneos e firmemente controlados pela Instituição (p.173). Em uma escola instituição, os valores são reproduzidos conforme as expectativas das classes sociais presentes em cada escola, ou seja, segundo a ótica de reprodução, a escola prepara um filho de médico para ser médico e um filho de um trabalhador operário para ser operário.

Já a escola contemporânea, proporcionou uma maior massificação ou democratização do acesso ao ensino, sob a pretensão de dar acesso igualitário a toda sociedade, acaba produzindo suas próprias desigualdades (p.175) e é tão exclusiva e seletiva como a escola de três décadas atrás. Em suma, por mais que se pense em uma educação mais libertária, com sentido real na vida dos estudantes, preparando-os para uma vida ativa e crítica, na prática, a escola é presa às amarras do conservadorismo e as mazelas do Estado e do mercado de trabalho.

 As professoras dessa forma estão fadadas ao fracasso, uma vez que sua prática é vista como arcaica e lhe são atribuídas cada vez mais exigências de formação continuada e tecnológica para suprir sua deficitária formação inicial. Da mesma forma, quando propõem uma didática mais avançada, com conteúdos significativos, são cobradas a seguir o conteúdo programático exigido pela escola, fundamentados nas diretrizes governamentais.

Como visto, não há consenso sobre como exercer a profissão docente a contento. Nessa lógica, aliada a rotina escolar e a relação aluno- professor, as docentes tem sua ação cada vez mais limitada. Em hiótese, podemos pensar nesse contexto como propício para o desenvolvimento de um quadro depressivo. Além dos índices de afastamentos por depressão, fazemos referência também aos pedidos de delimitação de função, ou seja, professores que criam uma aversão ao trabalho em sala de aula e solicitam transferência de função e passam a ser bibliotecários, monitores e ou passam a exercer cargos administrativos.

As pressões no ambiente escolar são as mesmas que encontramos na sociedade em geral, severas desigualdades, intolerância com a diferença étnica, religiosa, de condição sexual, enfim, a escola serve como um pequeno recorte para entender como essa diversidade cultural e social interage num contexto que produção de sujeitos. Porém, se pensarmos pela ótica do gênero, mais especificamente compreendendo que majoritariamente temos mulheres exercendo a função de docentes do ensino básico público, e as dificuldades já citadas sobre essas mulheres se libertarem das identidades e dos papéis que lhe foram atribuídos, seriam essa mulheres vítimas de uma dominação que impõe a percepção de sua condição de mulher?

Mesmo que as questões de identidade sejam discutidas pro Touraine, e vistas como negativas no processo de consciência do  sujeito e produção do ator social, em sua obra “O mundo das mulheres” (2007) o autor parece fazer uma exceção em relação a identidade de mulher. Ao discorrer sobre sua pesquisa realizadas com mulheres francesas, ele traz a crítica das diferentes correntes teóricas que abordam o tema do feminismo, gênero e sexualidade.

As criticas quanto o feminismo vem ao encontro das lutas dessas mulheres pela conquista de direitos, reconhecido hoje pelas mulheres atuais, mas que o autor se baseia no princípio da igualdade, dizendo ser essa igualdade relativa, uma vez que a mulher branca heterossexual busca a igualdade de direitos com o homem também branco, heterossexual e classe média. As questões de classe, etnia e homo/transsexualidade não são contempladas nessa corrente.

Da mesma forma, as corrente que estudam as questões de gênero também negligenciam essas categorias e permanecem em discussões duais, sobre público e privado, natureza e cultura, homem e mulher. O grupo de feministas americanas (Queer), cujo Judit Butller é uma das lideranças faz todas as críticas citadas e, centradas nas discussões sobre transgêneros e sexualidade propõe a abolição total das identidades centradas na questão sexual, ou seja, radicalizam que até mesmo o sexo é uma criação cultural e não biológica, vendo os transgêneros como comprovação de que o gênero antecede o a biologia, renunciando a todo tipo de identidade.

A partir desses argumentos, Touraine (2007) compartilha das críticas proferidas pelas feministas americanas, com exceção da que diz respeito ao fim das identidades, uma vez que sua pesquisa evidenciou que as mulheres passam a se identificarem como “mulheres”, para além dos demais papéis sociais desempenhados, mãe, esposa, profissional. Enfim, Touraine, mesmo afirmando que as identidades diluem o indivíduo, no caso das mulheres ele vê essa identificação positiva para o processo de construção do ator na sociedade pós-industrial.

Já no que tange ao processo de construção de sujeito para o universo docente, percebemos uma força de dominação que deteriora a identidade de mulher nas professoras. A sociedade pós industrial, além de produzir o individualismo, produziu também uma sociedade que medicaliza a vida e que indica patologias em  empreendimentos frustrados da vida pessoal e profissional. A depressão pode ser entendida um fenômeno social pós industrial e um empecilho para construção do sujeito e ator social. Mas em relação a escola, ainda permanece a dúvida se de fato a depressão é resultado das pressões do cotidiano e uma patologia que paira sobre a profissão docente ou, um recurso estratégico para o afastamento da rotina escolar.

 

Referências:

 

BOURDIEU, Pierre. A Reprodução - elementos para uma teoria do sistema de ensino. Lisboa: Editorial Vega, 1978

DUBET, François. Sociologia da Experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

TOURAINE, Alain. O Mundo das Mulheres.  Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

_____________ Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. 3ª Ed- Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

 

[1] Dados obtidos através de uma pesquisa  realizada ente os anos 2009 a 2011que resultou em um artigo monográfico de Especialização.

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Autores

  • PEIXOTO, Priscila dos S.

Áreas do conhecimento

  • Nenhuma cadastrada

Palavras chave

  • Escola; Sociologia; Adoecimento docente

Dados da publicação

  • Data: 28/06/2019
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