09/02/2019

O que significa ser professora de Filosofia no Brasil Pós-Golpe?

O Que Significa Ser Professora de Filosofia no Brasil Pós-golpe?

Jéssica Erd Ribas[1]

erd.jessica@gmail.com

 

Resumo: Este texto foi produzido durante a realização de meu Estágio Curricular Supervisionado em Filosofia, na disciplina de Estágio II.  Neste, sentido considerando o contexto político-educacional pós-impeachmeant da presidenta Dilma Rousseff e veiculação midiática que anunciava a Reforma do Ensino Médio brasileiro, através do instrumento da Medida Provisória, a pretensão deste texto se dá em promover algumas reflexões sobre o significado de ser um (a) professor (a) de Filosofia no Ensino Médio, considerando este contexto. Sinalizo que o texto promove uma reflexão de uma professora estagiária em filosofia que vivia os anúncios da perda da obrigatoriedade da filosofia enquanto componente curricular através das primeiras divulgações e anúncios da M.P 746/2016. Este texto, portanto, não acompanha o desenvolvimento da reforma educacional com a promulgação da Lei 13415/2017.  

Palavras-Chave: Ensino de Filosofia; Ensino Médio; Medida Provisória; Professora de Filosofia.

 

Considerações Primeiras

 

Como etapa concluinte do curso de licenciatura em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, realizei o Estágio Curricular  Supervisionado (ECS) em Filosofia na Escola de Educação Básica Augusto Ruschi, localizada no Bairro Santa Marta, Zona Oeste de Santa Maria. Durante a realização do ECS alguns medos e incertezas me acompanharam, sendo o mais intenso deles, sem dúvida, a reforma curricular para o Ensino Médio anunciada pelo governo Temer. Uma reviravolta. De repente os problemas e possibilidades que percebíamos em relação ao ensino de filosofia, foram dividindo espaço com uma classe de problemas que até então eu e meus colegas só havíamos lido nos livros ou ouvido relatos de uma geração mais velha: a luta pela presença da filosofia enquanto componente curricular obrigatório no Ensino Médio.

Durante a realização de meu Estágio, via acontecer o impechmeant. Via uma multiplicidade de corpos tomarem as ruas na luta contra a constante retirada de direitos da população. Via os secundaristas de todo país ocuparem as suas escolas dizendo não ao desmonte da educação pública. Via spray de pimenta, bomba de gás e bala de borracha como resposta dos governantes ao seu povo. Via o povo sangrando, levando golpes de cassetete em frente ao Congresso Nacional enquanto os golpistas tomavam champagne e aprovavam a PEC da morte. Via a filosofia deixando de existir, lentamente, nos currículos escolares outra uma vez. Percebia-me, professora/estagiária de filosofia, uma professora quase formada enfim, vivendo no Brasil Pós-Golpe. E pensava: o que poderíamos fazer? O que ainda poderíamos dizer?

Sentia a angústia de minha professora orientadora de ECS tentando encontrar meios, linhas de fuga, palavras que servissem-nos como um fio de esperança. Via na força e luta daquela mulher um grito silencioso que nos fazia um apelo para não desistir e recomeçar. Aprendi com ela a olhar o passado e clamar que minha geração fizesse o que a sua já havia feito em outros tempos: lutar, insistir, resistir; fazer a filosofia (r)existir afinal. Ora, a luta sísifica da presença da filosofia no currículo escolar da educação básica é uma luta encarnada, não uma luta da filosofia senão a nossa luta. E foi assim que busquei dar o primeiro passo e escrever este pequeno texto.

Sendo assim essas linhas representam algumas reflexões e lutas que me acompanharam durante a realização do Estágio, bem como, representam também, e acima de tudo, um apelo às lutas, os estudos e novas reflexões a serem feitas daqui por diante.

A filosofia, como se sabe, se desdobra ao longo da história, em nosso país, entre disciplina optativa e obrigatória nos currículos escolares. Sempre instável, sempre muito frágil. O ano de 2016, certamente configura-se como marco histórico de mais um capítulo dessa história de instabilidade. Dado que, o governo propõe uma reforma curricular para o Ensino Médio a qual prevê, dentre outros tantos danos, a retirada da obrigatoriedade da filosofia dos currículos escolares.  Diante disso, precisávamos, então, lidar com a incerteza se nossa disciplina voltaria a ter caráter optativo, se seria extinta ou teria seus conteúdos diluídos dentro de outros componentes curriculares. Viviamos na incerteza, sabendo apenas que nossa frágil filosofia desanda assim como desanda a nossa tão frágil e recente democracia.

Neste mesmo ano o Brasil viveu o impechmeant da Presidente Dilma Rousseff, não inesperadas após o impedimento uma série de medidas e reformas começaram a ser aprovadas e implementadas em nosso país, grande parte dessas medidas dizendo respeito ao setor educacional brasileiro. Cabe destacar aqui as duas grandes reformas anunciada na época, a saber, a Medida Provisória 746 e a Proposta de Emenda Constitucional 55 (PEC 55) – a qual prevê o congelamento nos investimentos de educação e saúde pelo período de vinte anos[2].

O contexto educacional pós-golpe constituiu-se, portanto, por significativas mudanças para o Ensino Médio. E é nesse cenário que realizei meu Estágio Curricular Supervisionado em Filosofia.  Dessa maneira, sendo eu licencianda em filosofia e tendo por objeto de estudo e atuação essa etapa da educação básica não poderia, portanto, ser outra a minha preocupação do que os rumos do “Novo Ensino Médio” e a condição da filosofia nos currículos educacionais.

Nesse sentido, propus-me a analisar, ainda que de modo geral, as intenções da Medida Provisória para o Ensino Médio, colocando-me a refletir sobre minha própria condição, uma professora/estagiária de filosofia. Durante toda a realização de meu estágio as medidas eram veiculadas e muitas delas aprovadas. Não foram poucas as vezes que ouvi na escola, de professores e de meus alunos questionamentos a respeito do que eu faria no futuro. Ou ainda, se valia mesmo a pena formar-me no curso de Licenciatura em Filosofia. Muitas vezes me fiz essas mesmas perguntas, chegando à conclusão de que sim, valeria a pena e que nosso futuro seria construído e constituído de muita resistência, assim fora nos anos 70 e 80 do século XX.

Este escrito nasce, portanto, de acontecimentos que me afetaram e de minha necessidade de pensar sobre o que significaria ser professora de filosofia no Brasil Pós-golpe. [3]

Sendo assim busco nesse escrito fazer uma breve retomada da história da filosofia no Brasil, a fim de, demonstrar a sua instabilidade nos currículos escolares. Bem como analisar de modo geral a Medida Provisória 746/2016 com o objetivo de explicitar o retrocesso que ele representa para o Sistema Educacional brasileiro. Destarte, destaco algumas proposições a respeito daquilo que acredito ser tarefa de professores de filosofia, dado esse contexto.

 

 

O Ensino Médio e o Ensino da Filosofia no Brasil: breves considerações

 

O Ensino Médio no Brasil, ao longo de sua história, foi quase sempre considerado um ensino para poucos, destinado apenas às elites. E não foram poucos os esforços dos educadores e movimentos sociais pela obrigatoriedade deste nível de ensino na educação básica. Da mesma forma que não foram poucas as reformas educacionais que tiveram influência na estruturação do Ensino Médio em nosso país.

 O fim da ditadura militar (1984) é um momento histórico que marca além de transformações sociais, políticas e econômicas, uma grande transformação educacional no Sistema de Ensino do país, o qual começa a se consolidar a partir da Constituição de 1988. Sendo a partir da formulação Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 que o Ensino Médio se consagrou como etapa final e obrigatória da educação básica.  Desde então temos muitas discussões, ações e concepções em torno de suas finalidades. Havendo sempre o embate se a educação escolar dos jovens deve ser encarada no nível das ações propedêuticas ou no nível das ações profissionalizantes, ou então na união dessas duas concepções.

 Como explicitado anteriormente no ano de 2016, com a MP 746/2016 e a PEC 55, essas discussões vêm à tona mais uma vez e são motivo de preocupação para educadores, pesquisadores em educação e, em certa medida, para a sociedade como um todo.

A LDB 9.394/96 compreende o Ensino Médio como etapa obrigatória da educação básica. Vejamos seu texto:

 

Art. 21. A educação escolar compõe-se de:

I – a educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

 

 

No entanto, a M.P 746 retorna uma concepção de Ensino Médio aos moldes da Lei 5692/71, com caráter de um ensino preparatório para ingresso no mercado de trabalho. Baseada, sobretudo, na pedagogia fordista-taylorista[4], padronizando o ensino em um conjunto de técnicas simples e repetitivas, com vistas somente a treinar o estudante – leia-se a juventude- para responder provas e aumentar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do país. O Ensino Médio, no entanto, enquanto etapa da formação na educação básica não pode ser tratado como mero treinamento, cujos fins visam aumento de índices. Conhecer as mais variadas concepções de mundo, é um direito que está levianamente sendo retirado dos escolares, a partir desta reforma educacional.

A MP746/2016 contraria o artigo 9º das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio de 2012 (DCNEM) determina treze componentes curriculares, conforme seu texto:

 

I - são definidos pela LDB: a) o estudo da Língua Portuguesa e da Matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil; a)o ensino da Arte, especialmente em suas expressões regionais, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos estudantes, com a Música como seu conteúdo obrigatório, mas não exclusivo; b)a Educação Física, integrada à proposta pedagógica da instituição de ensino, sendo sua prática facultativa ao estudante nos casos previstos em Lei; c)o ensino da História do Brasil, que leva em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia; d)o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História brasileiras; e)a Filosofia e a Sociologia em todos os anos do curso; f)uma língua estrangeira moderna na parte diversificada, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição. (DCNEM, 2012, p. 3)

 

Em contrapartida, a Medida Provisória estabelecendo a retirada da obrigatoriedade da filosofia, sociologia e língua espanhola do currículo escolar do Ensino Médio, destrói a concepção de Ensino Médio, prevista na LDB 93954/96, pois no momento em que ela fragmenta o currículo, excluindo disciplinas e enfatizando somente o ensino de português e matemática, transforma-o em espaço de formação para uma juventude trabalhadora, típica mão-de-obra barata. Para cumprir estes quesitos não é necessário se pensar em uma formação integral, afinal basta a estes sujeitos apenas saber ler, escrever e calcular. Trata-se, portanto, sem dúvidas do empobrecimento do currículo a partir da absolutização de dois componentes curriculares, estratégia típica de uma racionalidade neoliberal que captura a escola e faz dela um mercado de ensino e uma mera preparação para o mundo do trabalho.

 Desse modo a educação em nosso país retrocede incontáveis anos, distanciando-se da construção de uma educação básica de qualidade, que garanta uma formação integral sólida, a qual integre sim, em alguma medida, as atividades da vida com o mundo trabalho, mas que não faça disso seu foco matricial.  [5]

Não obstante, no mesmo sentido que caminhou a história do Ensino Médio brasileiro, caminha a história do ensino de filosofia no Brasil: disputando o seu lugar no sistema educacional. Dividindo a opinião dos legisladores e disputando a opinião pública, o ensino de filosofia do Brasil se caracteriza, como apresentado antes, pela instabilidade. “A presença da disciplina Filosofia, no ensino médio brasileiro, dependeu sempre da maior ou menor simpatia de nossa elite intelectual por esse tipo de saber”. (TOMAZETTI, p. 70, 2002).

A trajetória do ensino de filosofia no Brasil tem seu inicio com a chegada dos jesuítas no século XVI. A educação nesse período estava voltada, sobretudo, para a elite e a filosofia não passava de uma mera reprodução de ideias. Como escreve Cruz Costa (1967, p. 30) “a filosofia era considerada uma disciplina livresca, ela já vinha pronta da Europa, e o fato de saber reproduzir ideias era considerado uma grande cultura”. Sendo durante o século XIX, com o aparecimento da filosofia positivista e naturalista, que a filosofia ganha um papel importante na elite brasileira.

 E a partir da LDB de 1961 a filosofia vai sendo esquecida e perdendo gradativamente a sua importância no ensino, até ser banida totalmente do currículo. Em 1964, com golpe militar no Brasil, inicia-se uma série de reformas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Sendo importante destacar a reforma de 1971, conhecida como a reforma para o ensino de 1° e 2°grau, pela Lei 5692/71. Em linhas muito gerais pode-se dizer que essa reforma privilegiava uma visão utilitária do conhecimento. Sob forte influência do capital estrangeiro em sua implantação, consolidou-se a partir de uma orientação liberal tecnicista, visando a profissionalização do então ensino secundário. Com a finalidade de atender os interesses do governo militar, disciplinas como filosofia, história e geografia são substituídas pelas disciplinas de Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC).

Somente com fim da ditadura militar em 1984 que a filosofia retorna aos currículos escolares, mas sob o status de disciplina optativa. Assim vai se desenvolvendo a história e a luta pela inserção da filosofia como componente curricular obrigatório das escolas brasileiras.

 

No ano de 2001, a discussão acerca da importância dessa disciplina, ao final da escola básica, voltou à cena, a partir da aprovação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei n. 3178/97 que tornava obrigatórios os ensinos de Filosofia e de Sociologia, no ensino médio. No entanto, no momento decisivo, o projeto foi vetado pelo Presidente da República, sob a justificativa de que não teríamos professores de Filosofia suficientes para atender as demandas que se abririam.  (TOMAZETTI, p. 70, 2002).

 

É apenas em 2008 que se consolida a inclusão da filosofia nos três anos do ensino médio, de acordo com alteração do artigo 36 da LDB 9394/96, com a promulgação da Lei 11.684/2008.

 Com este pequeno apanhado histórico , quis fazer-se notar que a filosofia ao longo de sua história tem sua presença ora controlada, ora extinta, ora obrigatória nos currículos escolares. Em 2016 mais uma página dessa história começa a ser escrita. A filosofia perde o caráter de componente curricular obrigatório no currículo, mais uma vez por ameaçar os interesses de um governo golpista. Dessa vez, porém, o golpe no Brasil não foi civil-militar, foi constitucional-jurídico-midiático.

Em 1959, o filósofo brasileiro, Cruz Costa escreve que discutiu-se, e continua ainda a ser discutida, a posição da filosofia no currículo, havendo quem hoje (1959) queira eliminá-la deste currículo como ontem houve quem assim pensasse. Mais de cinquenta anos se passaram desde que Cruz Costa relata esta situação, entretanto, dado o contexto de reformas educacionais- política que se encontra nosso país é inevitável lamentavelmente perceber a atualidade do passado.

Colocando-me em reflexão diante deste momento político, percebo o quanto se faz necessário pensar o já pensado, discutir o já discutido, defender o já defendido e fazer valer, quem sabe, o já sabido. Urge o movimento de defender a obrigatoriedade da filosofia nas escolas desse país. Urge também que precisemos defender, uma vez mais e sempre, a democracia nesse país. É necessário que nós professores/as de filosofia, estudantes de filosofia, comunidade científica filosófica, outra vez iniciemos um movimento de  ressignificar os sentidos e objetivos dessa área do saber, afim de justificar sua presença na escola uma vez mais. E, não obstante, urge que (re) pensemos os sentidos de ser um/a professor/a de filosofia hoje, nesse Brasil Pós-Golpe. Tomo a liberdade de revisitar o passado novamente, pensando assim o presente, encontrando de novo abrigo nas palavras de Cruz Costa (1959, p. 122), onde escreve que: “do caos cabe que façamos o cosmos”.  Pois sejamos nós professores/as, estudantes de filosofia uma das resistências à modificar esse cenário de caos, tornando-o cosmos.  

 

 

M.P 746 e os retrocessos no Ensino Médio

 

Na tentativa de realizar uma análise geral sobre a M.P 746 e o significado que ela apresenta para o Ensino Médio brasileiro, a primeira conclusão a que se chega  é que ela produz  um empobrecimento do currículo escolar atrelada aos interesses de um governo neoliberal que reduz a formação e a educação a interesses econômicos. Nesse sentido, conduz  a educação escolar dos jovens à pautar-se por princípios que tendem a fabricar um tipo-sujeito-ideal para o ingresso imediatista no mercado do trabalho. Rouba-se de nossa juventude seus direitos básicos.

A MP  retirando o caráter de  obrigatoriedade de importantes disciplinas, propõe uma alteração na temporalidade do Ensino Médio – a partir da noção de Escola de Tempo Integral, não compreendendo dentro desta uma concepção de educação integral dos sujeitos [6]– e, sobretudo, através da concepção de que o Ensino Médio deve ser apenas uma espécie de curso preparatório para o ingresso  no mercado de trabalho ou na educação superior.

Contudo, antes de adentrar no conteúdo da MP 746 e analisar as intenções e concepções de educação estabelecidas nesta reforma, não é só válido como fundamental dedicar-se a refletir sobre o que significa pensar reformas curriculares educacionais através do instrumento de medida provisória.

É inegável que o Ensino Médio brasileiro necessita de mudanças. As mudanças não se restringem, no entanto, apenas à ordem curricular. Pois como estamos cansados de saber as perspectivas de melhoria na educação e na qualidade do ensino estão indissociadas das condições de trabalho docente, da remuneração, da formação e da valorização docente. O atual governo brasileiro, contudo, iniciou a concretização imediata de uma reforma curricular educacional para o Ensino Médio se valendo do instrumento de Medida Provisória. Esse tipo de instrumento, vale ressaltar, teve sua origem durante a ditatura militar. Uma ferramenta política criada como sucessão do “decreto-lei” – utilizado especialmente durante o Estado Novo (1937-1945).         Claro que Medida Provisória configura um ato unipessoal e possui temporalidade de sessenta dias prorrogáveis pelo mesmo prazo. Mas após esse período ela deve passar pelo crivo do poder legislativo para virar lei permanente. Nesse sentido a M.P 746/2016 aparece como forma de impor uma reforma educacional, uma vez que seus formuladores compreendem que não teriam aprovação popular. Não é possível considerar adequado e nem mesmo justo, portanto, com estudantes, pesquisadores, com as instituições acadêmicas e com a sociedade em geral, uma reforma curricular para o Ensino Médio que nasça de uma Medida Provisória.

A reforma proposta pelo governo prevê a flexibilização no Ensino Médio, organizando as disciplinas em cinco eixos formativos, com todos estudantes frequentando o período de um ano e meio de aulas e após esse período dedicando-se a um itinerário formativo.

 

O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional:

 

I português;

II Matemática;

III ciências humanas;

IV ciências da natureza e

V Formação técnica profissional; (Brasil, MEC, MP476, 2016).

 

A Medida Provisória se preocupa com uma escola de tempo integral, no entanto, não se ocupa em pensar a educação integral dos sujeitos do ensino médio, dado que, retira a obrigatoriedade de importantes disciplinas como vimos anteriormente. Dessa forma, a escola de tempo integral prevista na M.P tende apenas a treinar os estudantes para aumentar os indicadores e “elevar” os níveis da educação básica contrariando os princípios estabelecidos no artigo 5°das DCNEM de 2012.

 

Art. 5º O Ensino Médio em todas as suas formas de oferta e organização, baseia-se em: I – formação integral do estudante; II – trabalho e pesquisa como princípios educativos e pedagógicos, respectivamente; III – educação em direitos humanos como princípio nacional norteador; IV – sustentabilidade ambiental como meta universal; V - indissociabilidade entre educação e prática social, considerando-se a historicidade dos conhecimentos e dos sujeitos do processo educativo, bem como entre teoria e prática no processo de ensino-aprendizagem; VI - integração de conhecimentos gerais e, quando for o caso, técnico-profissionais realizada na perspectiva da interdisciplinaridade e da contextualização; VII - reconhecimento e aceitação da diversidade e da realidade concreta dos sujeitos do processo educativo, das formas de produção, dos processos de trabalho e das culturas a eles subjacentes; VIII - integração entre educação e as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura como base da proposta e do desenvolvimento curricular. § 1º O trabalho é conceituado na sua perspectiva ontológica de transformação da natureza, como realização inerente ao ser humano e como mediação no processo de produção da sua existência. § 2º A ciência é conceituada como o conjunto de conhecimentos sistematizados, produzidos socialmente ao longo da história, na busca da compreensão e transformação da natureza e da sociedade. § 3º A tecnologia é conceituada como a transformação da ciência em força produtiva ou mediação do conhecimento científico e a produção, marcada, desde sua origem, pelas relações sociais que a levaram a ser produzida. § 4º A cultura é conceituada como o processo de produção de expressões materiais, símbolos, representações e significados que correspondem a valores éticos, políticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade. (DCNEM, 2012).

 

 

Em documento enviado para a Presidência da República, pelo Movimento Nacional do Ensino Médio em outubro de 2016 por título Manifesto por uma Formação Humana Integral assinala essa problemática acentuado que

 

O relatório final da Comissão [7] confunde propositalmente educação integral com educação em tempo integral. Enquanto a primeira significa formação humana, ou seja, dotar os estudantes de uma base sólida de conhecimentos que lhes permita desenvolver-se plenamente, a segunda ocupa-se em estender o tempo que os estudantes passam na escola. E até mesmo para isso desconsidera pré-requisitos fundamentais, como infraestrutura adequada; professores com jornada completa, com salários e carreira compatíveis; novas metodologias e um currículo que integre ciência, tecnologia, cultura e trabalho sem o reducionismo geralmente proposto. Ou seja, vai-se apenas submeter os alunos a uma cesta de atividades e conteúdos dispersos. Além disso e igualmente importante, a proposta de oferta do Ensino Médio Integral promove a exclusão dessa etapa da educação básica um amplo contingente de jovens que trabalham e estudam. (Manifesto por uma Formação Humana Integral – Não ao retrocesso no Ensino Médio, acesso em www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br, disponível em nov. 2016).

 

Nesse mesmo sentido o Movimento Nacional Pelo Ensino Médio (2016) entende que a respeito da proposição de Ensino Médio diurno com jornada de 7 horas para todos (...) fere o direito de acesso à educação básica para milhões de jovens de 15 a 17 anos que estudam e trabalham.

Nega-se completamente nessa reforma curricular os pressupostos curriculares estabelecidos pelas DCNEM de 2012, os quais enfatizam a formação humana integral dos sujeitos integrando teoria e prática, promovendo a construção do conhecimento pela via da interdisciplinaridade e da contextualização, de modo, a estabelecer conexões entre os conteúdos escolares entre si e deles com a vida cotidiana.

Além disso, é importante lembrarmos que ao mesmo tempo que o governo pretende essa escola de tempo integral, formula-se e aprova-se uma proposta de emenda constitucional  que congela os investimentos na educação por vinte anos. Diante disso me questiono: que condições terão as instituições escolares de manter financeiramente essa escola de tempo integral? Dado ainda o contexto em que os estados passam por uma crise de arrecadação?  Certamente essa proposta é o incentivo que faltava para justificar a parceria publico-privada na educação escolar, contrariando assim a democratização e universalização do acesso e do conhecimento escolar. Deste modo, só é possível perceber – a partir dessa PEC – o inevitável sucateamento da educação pública e uma reafirmação violenta do que é uma escola para pobres e uma escola para ricos.

 E, diferentemente daquilo que tem sido veiculado na mídia a respeito da autonomia dos estudantes em escolher quais itinerários formativos irá realizar o que está previsto na MP 746 é sabido que os sistemas de ensino decidirão quais os eixos formativos irão oferecer. Ou seja, a decisão e a oferta cabem aos sistemas de ensino e não aos estudantes.

Nas palavras do Professor Dante Henrique Moura[8] em reportagem à Camilla Shaw[9] a reforma curricular proposta se relaciona com o objetivo de baratear o ensino médio, comprometendo o ensino público e a educação das classes mais empobrecidas do país. 

 

Os que ocupam posição mais privilegiada na hierarquia socioeconômica nunca se submeteram nem se submeterão aos limites das reformas educacionais, como foi no caso da reforma promovida pela Lei n°5692/71. (Debatendo a MP. Disponível em: www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br. Acesso em: dez. 2016).

 

 

Entende-se que as mudanças no Ensino Médio não podem ficar focadas apenas na ordem curricular. É necessário, como dito em outro momento, levar-se em conta a precarização da escola pública, as más condições salariais e de trabalho dos/as professores/as, a não valorização da profissão docente e a precarização nos cursos de licenciatura, dentre tantas outras problemáticas.

Ademais, a Medida Provisória 746/2016 representa uma total falta de respeito com as universidades que há anos vêm realizando pesquisas em relação aos desafios e possibilidades para o ensino no Ensino Médio; com a comissão permanente de educação da câmara dos deputados, que por cinco anos se dedicou a avaliar o currículo e que mediante discussões com pesquisadores e membros do Conselho Nacional de Educação (CNE) elaboraram propostas em relação ha uma possível reforma do Ensino Médio; uma falta de respeito também com todas as pessoas que se dedicaram a pensar e aprovar o segundo Plano Nacional de Educação (PNE) do país, o qual define diretrizes e metas positivas e necessárias para a educação nacional brasileira.

Ela representa, sobretudo, o total abandono dos documentos que orientam as políticas educacionais curriculares do nosso país, da mesma forma que não dialoga e/ou atende as demandas da sociedade brasileira. Pelo  contrário, essa reforma sinaliza no sentido oposto daquilo que importantes instituições, sociedades científicas e legislações afirmam a respeito do currículo escolar para o Ensino Médio.  Portanto, o que se observa nesse governo é um movimento de total interrupção de dialogo e um grandioso descaso com a educação básica pública e de qualidade.

 

Considerações Finais

 

A M.p 746/2016 marca o recomeço de uma luta que pensávamos já ter vencido e superada: a presença da filosofia como componente obrigatório nas escolas brasileiras. Marca ainda a retomada de discussões e enfretamentos caraterísticos (embora com outras roupagens, territórios e atores) daqueles que se viveu nos anos 1970 e 1980. Enquanto componente curricular, estamos voltamos à condição de uma pseudo-existência, a medida quediluem nossos conteúdos em Estudos e Práticas. Hoje, o fantasma da facultatividade já não é tão assustador, visto que, temos em nosso horizonte a liquidez.

É preciso construir rotas de fuga e de enfrentamento paraessa possibilidade da diluição. Alguns gritam: estão querendo diluir a filosofia! Será que alguém os escuta? Eu escuto! E gostaria também de gritar: não devemos nos contentar com a promessa de um lugar que não o nosso.

Na tentativa de oferecer uma resposta, inacabada vale ressaltar, à pergunta que deu título a este artigo, não encontro outra no momento senão esta: Resistência. Penso que devemos tomar as ruas, as praças, construir audiências públicas dialogando com a sociedade a fim conversar sobre as contradições e construir possibilidades de combatê-las. Combate a essa incessante interrupção do dialogo vivido em nosso país, que propositalmente confunde liberdade de expressão com discurso de ódio e violência. Combate à manipulação cega das grandes mídias que veiculam também propositalmente informações tendenciosas e muitas vezes desprovidas de verdade disputando a opinião pública e formando um desastroso caos opinativo na sociedade.

Sejamos um movimento de resistência aos retrocessos e as retiradas de direitos que nos vem sendo imposta. A retirada da obrigatoriedade da filosofia dos currículos traz a tona novamente uma lógica que coloca a filosofia na posição de um saber erudito e para poucos: destinado às elites. A história nos ajuda a afirmar que as instituições de ensino do setor privado não abrirão mão desse tipo de conhecimento. Dessa forma, estamos vivendo movimentos de solidificação daquilo que se pode chamar de uma escola de pobres para pobres e de uma escola de ricos para ricos.

O conhecimento sempre foi um instrumento de poder. Munir as classes populares com o poder do conhecimento parece algo destrutivo ao Brasil de atual. Um Brasil que se diz caminhar rumo à universalização e democratização do acesso e do conhecimento escolar mas que em seus outdoors traz por slogan “Não Pense em Crise, Trabalhe!”. Proposição esta que poderia muito bem ser substituída por “NÃO PENSE, Trabalhe!”. A PEC 55 e a MP 746 são manifestações concretas que validam, por assim dizer, essa afirmação. Há em nosso país vontade doentia, que pretende ao ensino os ritmos excessivos e repetitivos das fabricas e industrias ao invés do pensamento crítico, investigativo e reflexivo.

Para finalizar, reafirmo que a educação dos jovens não pode ser compreendida no âmbito da cegueira do treinamento. Negar-lhes a possibilidade de investigar a realidade de modo crítico é torná-los passivos perante as decisões que dizem respeito ao funcionamento da sociedade. É negar-lhes, em última instância, sua condição humana, tornando-lhes “coisas”.

Nietzsche (1998) [10] há muito tempo nos ensinou com o filósofo dançarino que devemos nos lançar ao exercício de investigação a fim de encontrar a leveza de si e das coisas, abandonando finalmente toda a obediência injustificada e cega.  Nesse sentido, tomo como exemplo a concepção de educação descrita por Renata Aspis (2004), ao defender o ensino de filosofia como experiência filosófica.

 

Pensamos que o justo seria educar, hoje, para que o aluno seja outro e não um mesmo, um mesmo que qualquer modelo, ou seja, que ele seja ele. O justo é educar para oferecer condições para o educando conquistar pensamento autônomo. O pensamento que conhece suas razões, que escolhe seus critérios, que é responsável, consciente de seus procedimentos e aberto a se corrigir. Pensamento criativo, capaz de rir de si mesmo, buscador de compreensão, sempre atento ao seu tamanho justo. Esse pensamento não se permite obediência a regra inquestionável do consumo automático e sem fim. Esse pensamento não se permite tornar-se ação baseado nos critérios da indústria. Ele não se permite o preconceito, não se permite coisificar. É de alguma forma, uma ferramenta de libertar-se, libertação no sentido nietzschiano, libertar-se das opiniões, das obrigações, da preguiça e do medo. (ASPIS, 2004, p. 304).

 

Acredito que a filosofia enquanto atividade crítica do pensamento sobre o próprio pensamento possa permitir aos jovens do Ensino Médio  que se tornem flexíveis e nômades em suas  relações com  o conhecimento. De modo que possam assim criar o novo de novo, reinventando os valores e contrariando também lógica desenfreada do mercado que se lança à educação.  

 

 

 

Referências

 

ALVES, Dalton José. A Filosofia no Ensino Médio: ambiguidades e contradições da LDB. Capinas: Autores Associados, 2007.

 

ASPIS, Renata Lima. O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio como experiência filosófica. Unicamp: 2004.

 

BOURDIEU, Pierre. Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (org.) Escritos da Educação. Petrópolis-RJ. Vozes: 1998.

 

BRASIL, Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer CNE/CEB 15/98 e Resolução CNE/CEB 03/1998. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB15-1998.pdf. Acesso em: 15 nov 2016.

 

BRASIL, Ministério de Educação e Cultura. LDB - Lei número 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996, BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.

 

BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Educação, de Currículo e Educação Integral. A Política Curricular da Educação Básica: novas diretrizes curriculares e os direitos à aprendizagem e desenvolvimento (versão preliminar). Brasília, junho 2012b.

 

BRASIL,  Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio). Brasilia: MEC, 2000.

 

BRASIL, Senado Federal. Proposta de Emenda Constitucional n°55 de 2016. Brasília, dezembro 2016.

 

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CARTOLANO, Maria Tereza Penteado. Filosofia no ensino de 2º Grau. SP: Cortez, 1985.

 

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[1] Mestranda em Educação pelo Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria. UFSM.  CEP: 97105-900. Santa Maria, RS, Brasil.

[2] A Proposta de Emenda Constitucional nº 55 de 2016 representa o ajuste fiscal como ação prioritária do governo Temer. A Emenda prevê o congelamento nos gastos públicos por vinte anos, redirecionando o crescimento do fundo público para o pagamento da dívida pública. Um ataque aos recursos alocados no atendimento das camadas mais desfavorecidas economicamente da população brasileira.

[3] Golpe sim! Uma reforma curricular feita através de instrumento de medida provisória só evidencia a deslegitimidade política daqueles que a formularam, dado que, alcançaram o poder sem o voto popular.

[4] Durante o século XX duas formas de organização de produção industrial provocaram significativas mudanças no mundo do trabalho fabril. O Taylorismo e o Fordismo tinham por objetivo maximizar a produção e o lucro. A MP 746 de 2016 apresenta uma concepção de educação que dialoga com esses objetivos, e para a concretização destes, destrói os princípios da escola de formação humanísticas construídas no período de redemocratização. E, compreende a formação escolar por um viés pragmático, tecnicista, com vistas a atender as demandas do mercado de trabalho. A educação é entendida como uma ferramenta para controlar a crise econômica do país. A reforma curricular proposta reitera o caráter da escola tecnicista, da educação e sociedade mercantil, em nome de uma empregabilidade imediatista, concebidas aos moldes de produção fordista-taylorista do século XX aliada ao princípio Just in Time preconizadas pelo Toyotismo, representação clara do Brasil Pós-Golpe. O Brasil Pós-Golpe necessita de mão-de-obra barata para trabalhar nas empresas impactadas pela crise econômica. Dessa forma, o Just in Time da educação Brasileira é a exclusão da filosofia, sociologia e língua espanhola dos currículos do Ensino Médio.

[5] A M.P 746/2016 desconsidera todos os documentos importantes que orientam as propostas curriculares educacionais para o Ensino Médio. Ela materializa o abandono inescrupuloso da LDB 9394/96, das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2012), dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2000), e das Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006).

 

[6] Educação em Tempo Integral difere-se epistemologicamente de Educação Integral. Nesta reforma o que aparece como integral é o tempo e não a formação, pois como vimos, ela destrói o Ensino Médio brasileiro.

[7] Comissão Específica da Câmara dos deputados que analisou a medida provisória 746.

[8] Professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN).

[9] Estagiária de Comunicação da Anped.

[10] Ver a obra Assim Falou Zaratustra.

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Volume/Edição

Autores

  • RIBAS, Jéssica Erd

Páginas

  • 1 a 18

Áreas do conhecimento

  • Nenhuma cadastrada

Palavras chave

  • Ensino de Filosofia; Ensino Médio; Medida Provisória; Professora de Filosofia.

Dados da publicação

  • Data: 09/02/2019
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