“MINHA PALAVRA VALE UM TIRO E EU TENHO MUITA MUNIÇÃO”: O DISCURSO TEOLÓGICO DO RAP E O NASCIMENTO DA TEOLOGIA DA RUA
“MINHA PALAVRA VALE UM TIRO E EU TENHO MUITA MUNIÇÃO”: O DISCURSO TEOLÓGICO DO RAP E O NASCIMENTO DA TEOLOGIA DA RUA
Vinícius Barbosa Cannavô, graduado em Teologia pela Universidade La Salle – Canoas/RS. E-mail: vinicius.cannavo@lasalle.org.br
Adilson Cristiano Habowski, graduando em Teologia pela Universidade La Salle – Canoas/RS. E-mail: adilsonhabowski@hotmail.com
RESUMO
O presente artigo versa, de forma dialética e interdisciplinar, sobre o rap nacional como chave de leitura teológica possível para a compreensão da realidade da favela, delineando o conceito de identidade narrativa (Paul Ricoeur) com o intuito de analisar as possíveis categorias teológicas contidas no rap, a partir das quais se anunciam o profetismo, a teologia negra e a escatologia. Procuramos apresentar a literatura bíblica profética em consonância com as composições do rap, examinando a personalidade do profeta em similitude com a do rapper. Sabe-se que os rappers não possuem formação acadêmica nem fazem estudos sistematizados acerca das temáticas abordadas, mas se apresentam como um tipo diferente de intelectual que dialogam com o saber teológico. Por sua vez, a teologia negra (James Cone) impulsiona a experiência do contexto negro, tendo em vista o povo negro como interprete da escravidão, da segregação, da libertação e da esperança. Desta forma, constatamos a espiritualidade que emana da experiência do calvário urbano e a ressignificação da identidade embasada na tomada de consciência que colidem com a compreensão escatológica negra profetizada pelos MCs. Concluímos que o rap busca gerar sentido para o indivíduo que sintoniza a sua vida com o relato musical através das prospectivas reais de realização de um futuro próximo melhor. Nesse sentido, através da pesquisa bibliográfica, o ensaio apresenta questões inerentes ao movimento do rap que precisam ser refletidas no âmbito acadêmico.
Palavras-chave: Identidade Narrativa. Rap. Teologia da Rua.
ABSTRACT
The following article will discuss, in an argumentative and interdisciplinary manner, about the national rap as a possible key to theological reading on the understanding of the reality in the slums. The concept of narrative identity (Paul Ricoeur) will be outlined, with the purpose of analyzing the possible theological categories within rap music, upon which are announced prophethood, black theology, and eschatology. It is aimed to present the prophetical biblical literature in harmony with rap compositions. The personality of the prophet in resemblance with the rapper’s will be examined. Rappers do not have academic knowledge nor do they make systematized studies, however, they present themselves as a different kind of intellectual who dialogues with theological knowledge. Black theology (James Cone) promotes the experience of the black context, considering the black folk as interpreters of slavery, of segregation, of liberation and hope. The spirituality that emanates from the experience of the urban Calvary and the resignification of identity based on the awareness, which collide with the black eschatological comprehension prophesized by the MCs are asserted. Rap seeks to create meaning for the individual which synchronizes his life with the lyrics of the songs through the prospective of the realization of a better future to come. Through bibliographical research, the essay presents questions inherited in the rap movement that need to be reflected in the academic sphere
Keywords: Narrative Identity; Rap; Street Theology
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Tentar identificar e compreender o rap e relacioná-la com a teologia da rua, é trilhar por um caminho com poucas direções, visto que são poucas as pesquisas aprofundadas sobre o tema. Entretanto, isso serve de impulso para as pesquisas, pois, conforme Habermas (1993, p. 94), “pelo fato de não sabermos se é dada a possibilidade de sucesso, devemos ao menos tentar. Sentimentos apocalípticos não produzem nada, além de consumir energias que alimentam nossas iniciativas”. Nessa perspectiva, o artigo tem a finalidade de propor uma análise das possíveis categorias teológicas contidas no rap[i] a partir das quais se anunciam o profetismo, a teologia negra e as prospectivas de futuro calcadas na tomada de consciência. O gênero musical[ii] em questão nasce na penúltima década do século XX, nos Estados Unidos da América, em um contexto suburbano de predominância étnica negra. O rap[iii] é um dos pilares que sustenta o hip-hop[iv] e traz consigo, desde a origem, a crítica dos negros – e, posteriormente, englobam-se os pobres, a respeito do racismo, da distinção de classes, da violência, dos estereótipos. Estes são os conteúdos transversais, mas a criminalidade, a ética marginal e a fé são abordadas com determinada frequência.
O rap é inspirado na música afro-americana (jazz, soul, blues), descendente da senzala, das plantações de algodão e da experiência de sofrimento dos escravos. Por mediações poéticas, as letras nos remetem à história do passado, do presente e também do futuro. O passado traz consigo uma carga de tensões sofridas por seus ancestrais. O presente é um grito de clamor no escuro e o futuro está calcado na esperança escatológica daquilo que há de vir.
A teologia e o rap coincidem quando concebem uma chave de leitura diferente para a realidade que clama por libertação e reconciliação. A comunidade negra é o espírito norteador da teologia negra[v] enquanto experiência de sagrado. A partir disso, constatam-se a espiritualidade que emana da experiência do calvário urbano, a ressignificação da identidade embasada na tomada de consciência, a escatologia profetizada pelo MC[vi] e o rap como gerador de sentido. Desta forma, ante a esses conceitos somos indagados: quais são as possibilidades das categorias subjacentes às formas de vivenciar e ser no mundo através do rap para pensar em uma Teologia da Rua? Adotamos como fio condutor para a análise a abordagem hermenêutica, que é voltada para a compreensão e a interpretação de textos, discursos e imagens. Conforme Habermas (1994, p. 222), "a compreensão hermenêutica se endereça por sua mesma estrutura a garantir, dentro das tradições culturais, a autocompreensão possível dos indivíduos e dos grupos, que oriente a ação, e uma compreensão recíproca entre os indivíduos e os grupos com tradições culturais distintas”. Com isso, a postura hermenêutica nesta temática procura discernir e contextualizar enquanto caminho escatológico de esperança para as pessoas que estão no calvário contemporâneo caracterizado pelo potencial discursivo das composições musicais.
2 “EU VIVO O NEGRO DRAMA, EU SOU O NEGRO DRAMA”: CONSTRUINDO E RECONHENCENDO-SE ATRAVÉS DA NARRATIVA
A identidade no âmago do rap é vista como “um poderoso meio expressivo dos negros urbanos e pobres da América” (GILROY, 2001, p.89). Nesta perspectiva, temos como objeto possível de análise o verso inicial deste capítulo do grupo Racionais MCs: “eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama” (BROWN, 2002) que procura elucidar o caráter do negro existente na contemporaneidade, mas que provém de muito tempo atrás. O verso além de carregar denotação étnica negra também evoca o reconhecimento do ser negro, quando o grupo afirma: “eu não li, eu não assisti” (BROWN, 2002) ou seja, que o conhecer e o reconhecer-se é vivenciado no cotidiano. A noção de identidade aqui considerada é a de identidade narrativa estabelecida pelo pensador francês Paul Ricoeur:
A compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, mediação privilegiada, esta última se abebera na história tanto quanto na ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia, ou, digamos, uma ficção histórica, entrecruzando o estilo historiográfico das biografias ao estilo romanesco das autobiografias imaginárias (RICOEUR, 2014, p.112)
As implicações em compor e cantar uma música são segmentos constitutivos do processo dialético entre ficção e biografia. As letras de rap estão carregadas de elementos simultaneamente biográficos e fictícios que constroem a identidade do indivíduo e do grupo através da narração. A música “Negro Drama”, do grupo Racionais MCs, explicita o estereótipo “dramático” de ser negro. A partir disso, reconhece uma fração da identidade vivenciada no dia a dia. Concomitante a isso, acaba construindo tanto a sua identidade como a do ouvinte que sintoniza a sua realidade com o relato musical, em conformidade com a letra: “Negro drama/ Crime, futebol, música, caraio/ Eu também não consegui fugir disso aí/ Eu sou mais um/ Forrest Gump é mato/ Eu prefiro contar uma história real/ Vô conta a minha” (BROWN, 2002).
O rap recria poeticamente as vivências da periferia, registrando os tópicos mais relevantes acerca da cultura e do desenrolar de vida das pessoas. Em consonância, os negros, “expressavam a sua fé em forma de testemunho” (CONE, 185, p.154), fazendo menções aos velhos contadores de histórias africanos, que, pela oralidade, passavam conhecimento aos menos experientes. Também, o rap, tem poder discursivo de revelar as condições do gueto, oferecer perspectivas diferentes sob o viés antagônico ao do dominante e atribuições práticas para literalmente salvar seus manos de rua[vii]. A música, por vezes na condição simbólica, para alguns grupos étnicos e sociais, foi e ainda é a única forma de expressão da identidade, o último grito de clamor, o último grito de liberdade. Para compreender o movimento do rap “é necessário realizar uma análise do conteúdo das letras e das formas de expressão musical” (GILROY, 2001, p.95). Por isso, é imprescindível estarmos atentos aos sons, letras e batidas que fluem da música, para que resgatemos os traços históricos, ontológicos e a experiência do sujeito antes da senzala e agora da favela.
Partindo da concretude do pressuposto da narração na formação de que “conhecer é reconhecer” (RICOEUR, 2014, p. 115) o rap carrega traços cristalinos que a confirma. Conforme Paul Gilroy (2001, p.179) “é importante enfatizar três elementos do hip-hop – pedagogia, afirmação e brincadeira – que contribuem para uma constelação cultural-popular”. Podemos visualizar este tripé em um trecho da música “Na Zona Sul”, do rapper Sabotage:
Eu insisto, persisto, não mando recado/ Eu tenho algo a dizer, não vou ficar calado/ Fatos tumultuados, nunca me convenceu/ Mais vale a vida, bem vindo às vilas do meu bairro, Deus!/ Corre escape tem quinze no pente chantagem/ Gambézinho faz acerto depois mata na crocodilagem/ Absurdo, não me iludo no subúrbio/ Dinheiro sujo, constantemente nos trai no futuro/ Falsos amigos e aliados pensando em ganhar/ Não adianta passar pano, o pano rasga/ Mundo cão, decepção constrói, transforma/ A pivetada da quebrada num transporte pra droga/ Zona sul, conheço um povo todo inibido/ Tanta promessa, enrolação acaba nisso (SABOTAGE, 2001).
O estilo musical em questão está preocupado em formar a identidade através do desenvolvimento da consciência. O rap funciona como um intercâmbio entre ideias e experiências, procurando ampliar a cultura suburbana. A partir disso, Herschmann (2005, p.186) delineia que os sujeitos que fazem o hip-hop forjam a sua identidade a partir da moda e da linguagem proveniente das periferias. Estes locais adotados pelos rappers aparecem constantemente nas letras de música, onde o afeto por esses lugares está arraigado na promoção da segurança, do bem-estar da comunidade e no crescimento e desenvolvimento das crianças e dos jovens. A preocupação de Sabotage e do grupo Racionais MCs, respectivamente, são notáveis em seu discurso: “Brooklin, o que será de ti? Regar a paz, eu vim” (2001) e “Sempre quis um lugar/ Gramado e limpo, assim verde como o mar/ Cercas brancas, uma seringueira com balança/ Disbicando pipa cercado de criança” (2002).
A distinção estabelecida parte de How to do things with words entre duas classes de enunciados, a dos enunciados performativos e dos enunciados constativos. Os primeiros são notáveis porque o simples fato de enunciá-los equivale a realizar exatamente aquilo que é enunciado. [...] se dizer é fazer, é realmente em termos de ato que se deve falar do dizer (RICOEUR, 2014, p.22).
Tendo em vista a concepção ricoeuriana de enunciados performativos, confirmamos com Gilroy (2011, p.217) que o gênero musical em destaque é uma importante narrativa cultural, pois conta e reconta inúmeras histórias não só da ascensão dos fracos sob os fortes, mas também dos poderes relativos desfrutados pelas diferentes classes sociais.
Tem erro na pintura da imagem do inimigo/ Perigo não põe camisa na cara, no distrito/ É o que tem estilista e usa seda/ Tem curso superior pra matar criança indefesa/ No outdoor o publicitário deixou falha/ Não viu ladrão de terno com a Glock engatilhada/ Sequestrador a mídia cobra, um mês, tá morto/ Diferente de quem rouba com a caneta de ouro/ Se por milagre preso fica emocionalmente abalado/ E é receitada prisão domiciliar pra arrombado/ O ladrão de seis galinhas tá no presídio/ O banqueiro tá livre porque tem endereço fixo/ Sonha que o congresso vai aprovar lei mais severa/ É o mesmo que o deputado atirar na própria testa/ Com a justiça reformulada não sou eu que tô fudido/ É a madame que vai levar jumbo pro marido/ O que me faz roubar não é pena branda/ É ver a lata de arroz sem um grama/ Eu sou só a consequência que te dá fita amarela/ Efeito do prefeito com dólar em Genebra/ O sangue do morro é o combustível do jato/Na seguradora até o manto sagrado (FACÇÃO CENTRAL, 2003).
A letra do grupo Facção Central traz consigo um estilo agressivo, entretanto lúcido. O grupo relata, com tom de ironia, a realidade do pobre e do rico em meio à criminalidade, expondo o que ocasiona para cada uma dessas classes em diversas situações possíveis. De fato, reconhecer o pobre da favela como marginalizado na sociedade é uma questão importante na tomada de consciência, pois através do senso crítico do sujeito se compreende que a lógica do sistema evoca a morte constantemente.
O morador da favela é, potencial e simultaneamente, marginalizado e justo, mas também alguém que, conforme Susin (1984, p.441) é o Eu-Messias. O Messias é justo e por isso sofre, pois tomou o sofrimento dos outros. O apogeu do ser é este messianismo, porque concentra o sofrimento sobre si do Eu. Tendo em vista que somos todos Messias e reconhecendo este poder, devemos assumir uma responsabilidade universal. Por isso, o messianismo é a ipseidade da subjetividade. É como Messias que Eu posso ser realmente Eu. Dentro desta perspectiva, nascem as lideranças da comunidade, são pessoas que vão lutar em defesa da favela. Hoje, parte da representatividade da comunidade está na figura dos traficantes e, a outra, dos rappers.
Levando em consideração a preocupação dos rappers com assuntos relevantes a uma grande parte da sociedade, é perceptível a dimensão de alteridade que emana do indivíduo através da narrativa musical. Desde a exaltação e/ou cuidado com familiares ou integrantes da comunidade local, podemos visualizar isso quando Sabotage canta: “Zona sul, no Brooklin aprendi viver/ E o respeito de um por um, faz a paz prevalecer” (SABOTAGE, 2001) e na música “Mãe”, do rapper Emicida, em que a narrativa inteira é dedicada à sua mãe.
Pra nós punk é quem amamenta, enquanto enfrenta a guerra/ Os tanque, as roupas suja, a vida sem amaciante/ Bomba a todo instante, num quadro ao léu/ Que é só enquadro e banco dos réu, sem flagrante/ Até meu jeito é o dela/ Amor cego, escutando com o coração a luz do peito dela/ Descreve o efeito dela: breve, intenso, imenso/ Ao ponto de agradecer até os defeito dela/ Esses dias achei na minha caligrafia tua letra/ E as lágrimas molham a caneta/ Desafia, vai dar mó treta/ Quando disser que vi Deus/ Ele era uma mulher preta (EMICIDA, 2015)
Desta forma, a autenticidade das letras de rap é constituída através das experiências coletivas singulares que remetem ao grupo. No rap, há um espaço de partilha destas experiências que acarretam no alicerçamento da identidade, enfrentando as adversidades do contexto social. Com isso, constatamos uma espiritualidade que emana da experiência do calvário urbano, onde a construção, e por vezes a ressignificação da identidade estão calcadas na tomada de consciência, tornando-se fator chave no cotidiano da favela. Confirmamos com Sabotage, quando nos relata em sua canção (2001), “Na zona sul cotidiano difícil/ Mantenha o procede, quem não conte tá fudido/ É zona sul maluco cotidiano difícil/ Mantenha o procede, quem não conter tá fudido”.
3 EMBAIXADOR DA RUA, PROFETA DO GUETO
A distância entre o profeta e o rapper é tênue. Os profetas são enviados por Deus, são mensageiros do projeto salvífico. No Antigo Testamento, com proporção religiosa, há uma dimensão histórico-crítica fundamentada no contexto social da época. Na contemporaneidade, com proporção ontológica e ideológica, contudo não desconexa da religiosa, também há uma dimensão adjacente alicerçada ao contexto social. Desde o juízo veterotestamentário, Deus chama os seus escolhidos: “antes mesmo de te modelar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísse do seio, eu te consagrei. Eu te constituí profeta para as nações” (Jr 1,5). Este chamado acontece de diversas formas na literatura bíblica e, posteriormente, até a atualidade continua ocorrendo. O rapper Emicida sentiu a sua vocação de profeta do gueto[viii] e seguiu o chamado como porta-voz da rua[ix]. Foi o próprio Deus que o chamou, memorando que “muitos são chamados, mas poucos escolhidos” (Mt 22,14). Desse modo, ele assumiu a missão porque ele “aguenta ser real”, como relata em sua letra:
Não escolhi fazer rap não, na moral/O Rap me escolheu por que eu aguento ser real/ Como se faz necessário, "tiozão"/ Uns rima por ter talento, eu rimo porque eu tenho uma missão/ Sou porta-voz de quem nunca foi ouvido/Os esquecido lembra de mim porque eu lembro dos esquecidos, hã/ Tipo embaixador da rua (EMICIDA, 2009).
O rapper é a voz da periferia. Suas letras estão carregadas de questionamentos acerca da situação social reproduzida pelo sistema. Os rappers, com “seu discurso mais politizado, são considerados com alguma frequência os porta-vozes, os ‘gurus’ das populações que habitam as periferias” (HERSCHMANN, 2005, p.234). Eles vivem e cantam na e sobre a periferia. Concebemos suas músicas com teor anunciante e denunciante, em consonância com o perfil dos profetas no Antigo Testamento:
O “homem de Deus” (‘îs ‘elohîm) e os filhos dos profetas (benê nebi’îm) são exemplos, com a sua mesma característica: surge em tempos de crise, motivada por problemas como fome, seca, pobreza, guerra, tensões políticas e sociais; os indivíduos que aparecem com o título “homem de Deus” estão oprimidos ou se relacionam com membros periféricos da sociedade; a maneira pela qual eles desempenham seu papel implica uma atividade de grupo (SICRE, 1999, p.199)
O rapper, que também vamos nos referir como profeta do gueto, é a representação máxima dos marginalizados. No âmbito teológico, a análise relacional pode ser dada na ótica profética, pois “os profetas são os mensageiros da palavra de Deus na história e para a história” (SCHÖKEL; SICRE, 2004, p.14). Foi Deus que escolheu o profeta como mensageiro: “Vê! Eu te constituo, neste dia, sobre as nações e sobre os reinos” (Jr 1,10). O papel do profeta do gueto não é só dar voz aos mudos, mas também contar histórias. Com isso, surge, no seio da favela,
um tipo diferente de intelectual, principalmente porque sua auto identidade e sua prática da política cultural permanecem fora desta dialética entre devoção e culpa que, particularmente entre os oprimidos, tantas vezes tem governado a relação entre a elite literária e as massas da população existentes fora das letras (GILROY, 2001, p.165).
Calcado na similitude entre a figura do rapper e a do profeta e nesse jogo de antíteses que visualizamos no rap, também frisamos que o rapper além de profeta é um intelectual da rua. Ele tem potencial destrutivo para aniquilar o sistema e propositivo para gerar esperança onde tudo parecia perdido.
Desigualdade faz tristeza/ Na montanha dos sete abutres/ Alguém enfeita sua mesa/ Um governo que quer acabar com o crack/ Mas não tem moral pra vetar/ Comercial de cerveja/ Alô, Focault/ Cê quer saber o que é loucura/ É ver Hobsbawm/ Na mão dos boy/ Maquiavel nessa leitura/ Falar pra um favelado/ Que a vida não é dura/ E achar que teu 12 de condomínio/ Não carrega a mesma culpa/ É salto alto, MD/ Absolut, suco de fruta/Mas nem todo mundo é feliz/ Nessa fé absoluta/ Calma, filha, que esse doce/ Não é sal de fruta/ Azedar é a meta/Tá bom ou quer mais açúcar? (CRIOLO, 2014).
A partir da literatura profética, de conteúdo religioso e humano, os autores Schökel e Sicre (2004, p.20) empregam quatro pontos que orientam, por padrão, o conteúdo abordado pelos profetas. Destacamos o conteúdo dos oráculos: a) instrução ou norma; b) interpretação iminente dos fatos históricos; c) denúncia; d) promessa. A familiaridade entre os relatos bíblicos proféticos e as letras de rap podem ser visualizados, respectivamente, conforme os conteúdos elencados. Notório no primeiro conteúdo, instrução ou norma, à nível de exemplo da relação bíblica e musical: “eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Que o direito corra como água e a justiça como um rio caudaloso! Por acaso oferecestes-me sacrifícios e oferendas no deserto, durante quarenta anos, ó casa de Israel?” (Am 5, 21. 24-25). Em consonância ao profeta Amós, Sabotage (2012) exprime: “Canão foi tão bom, poder falar pro dom/ Que aprendi com o jão como obter mais alegria/ Cara, sempre informação, sangue puro e bom/ Pras drogas basta um simples não, o dom da opinião”.
Ao que tange o segundo conteúdo, interpretação iminente dos fatos, a relação pode ser configurada a partir de ambas as literaturas: “ficarei de pé em meu posto de guarda, me colocarei sobre minha muralha e espreitar para ver o que ele me dirá e o que se responderá à minha queixa” (Hab 2,1). Em conformidade com o profeta Habacuc, na música “Um bom lugar”, Sabotage (2001) canta: “Vou seguir sem pilantragem, vou honrar, provar/ No Brooklin, tô sempre ali/ Pois vou seguir, com Deus enfim”. Concomitante ao terceiro conteúdo, denúncia, a afinação dos temas coincide: “eles estão deitados em leito de marfim, estendidos em seus divãs, comem cordeiros do rebanho e novilho do curral. Por isso, agora, eles serão exilados à frente dos deportados, e terminará a orgia daqueles que estão estendidos” (Am 6, 4. 7). A música “Mágico de Oz”, do grupo Racionais MCs, é condizente com o profeta Amós quando relata: “Moleque de rua rouba, o governo, a polícia no Brasil/ Quem não rouba? Ele só não tem diploma pra/ Roubar, ele não se esconde atrás de uma farda suja”. (BROWN, 1997).
E por último, o quarto conteúdo, promessa: “eu, contudo, estou cheio de força, (do espírito de Iahweh) de direito e de coragem para denunciar a Jacó o seu crime e a Israel o seu pecado” (Mq 3,8). Mais uma vez, a letra do rapper Sabotage (2001), “No Brooklin”, carrega traços similares da literatura do profeta Miquéias: “Mais uma vez esse conselho sim, vou seguir, mais uma/ vez esse conselho eu tenho que seguir, á muito tempo/ esse conselho eu venho buscando e é de Deus que eu/ preciso pra seguir”.
Os rappers enunciam criticamente as vivências cotidianas. A força de seu discurso atinge toda a periferia urbana, produzindo e reconhecendo a realidade da comunidade. A legitimidade discursiva se justifica na metodologia do rap, tendo em vista a utilização do estilo profético na linguagem do cantor. Com isso, confirmamos a voz periférica como uma arma enquanto potencial destrutivo e prospectivo calcada na figura do profeta do gueto. A missão fundamental do rapper é anunciar e realizar a profecia. Por isso, apesar do rapper possuir perfil semelhante ao do profeta, também carrega traços do Messias. A linha que costura a identidade do rapper é tênue em relação à figura do profeta e do Messias. Fazendo alusão a ressurreição de Cristo, “a fúria negra ressuscita outra vez” (BROWN, 1997) porque enquanto houver discriminação, pobreza, injustiça social e fome, o projeto salvífico de Deus não estará completo. O profeta anunciador se faz, simultaneamente, necessário como o Messias realizador da proposta do Reino de Deus. Ainda assim, apesar da hibridez, o perfil do profeta é mais forte no rapper.
Eu tenho uma missão e não vou parar/ Meu estilo é pesado e faz tremer o chão/ Minha palavra vale um tiro... eu tenho muita munição/ Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além/ E tem disposição pro mal e pro bem/ Talvez eu seja um sádico, um anjo, um mágico/ Juiz ou réu, um bandido do céu/ Malandro ou otário, quase sanguinário/ Franco atirador se for necessário/ Revolucionário, insano ou marginal/ Antigo e moderno, imortal/ Fronteira do céu com o inferno/ Astral imprevisível, como um ataque cardíaco no verso/ Violentamente pacífico, verídico/ Vim pra sabotar seu raciocínio/ Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo/ Pra mim ainda é pouco/ Brown cachorro louco/ Número um... dia terrorista da periferia/ Uni-duni-tê, eu tenho pra você/ Um rap venenoso ou uma rajada de Pt/ E a profecia se fez como previsto/ 1997 depois de Cristo/ A fúria negra ressuscita outra vez/ Racionais capítulo 4 versículo 3 (BROWN, 1997).
4 TEOLOGIA NEGRA: “FAVELA AINDA É SENZALA, JÃO”
Para concebermos uma teologia do rap, precisamos delinear um percurso lógico que exponha gradativamente o assunto. Com isso, se faz necessário compreender as categorias e estruturas históricas, sociológicas e antropológicas subjacentes ao movimento musical no âmbito da teologia. A música negra surge da experiência negra de sofrimento, sobretudo do negro da senzala durante o período escravagista.
4.1 Escravidão e segregação racial
Os processos de abolições da escravatura foram ocorrendo em todo o continente americano durante o século XIX. Conforme Gibellini (2012, p.385) em 1865, o então presidente estadunidense Abraham Lincoln, aplica a lei de abolição da escravatura. Inicia-se então, um período de introdução e instrução do negro na sociedade branca norte-americana. A segregação racial e o racismo, visíveis na contemporaneidade, começam com o fim da escravidão, pois não havia necessidade de separar aquilo que já era diferente.
Isso tá errado irmão, tá ligado, tá errado. Tirar as pessoas da condição de igual. A condição de igual é que faz a liberdade para a pessoa, tá ligado. Se sentir igual, pelo menos... é assim. Mesmo que eu tiver duro, eu não posso me sentir menos que você. “Ah porque... porque o cara me deu um quilo de açúcar, pô que merda meu, por causa de um quilo de açúcar tem que ficar a vida toda com aquele cara, pô, para cara, é o mínimo, é o básico, não tem que mendigar açúcar pra ninguém, é mínimo que tinha que ter, irmão. O fruto disso são oposições, né. Hoje tem um... aparece uns cara aí dizendo que nós somos do governo [...] Eu não faço parte do governo (PT), na prioridade eu fiz parte, participei porque era prioridade para o povo negro que o Lula ganhasse (Entrevista de Mano Brown à TV CULT, 2015)
O assunto que o rapper “Mano Brown” critica não só gera escassez material, mas também xenofobia e deturpação da cultura. Por isso, a feição do afrodescendente que vive segregado e em situações desumanas, pode ser considerado o mais pobre entre os pobres. (PUEBLA 34). O rapper Emicida é categórico quando expõe sua versão poética, com termos que remetem ao período escravagista, a indignação com o tratamento recebido pelos negros antes de senzala, agora de favela: “Por mais que você corra irmão/ Pra sua guerra vão nem se lixar/ Esse é o xis da questão/ Já viu eles chorar pela cor do orixá?/ E os camburão o que são?/ Negreiros a retraficar/ Favela ainda é senzala jão/Bomba relógio prestes a estourar” (EMICIDA, 2015).
4.2 Igreja negra
Nos anos subsequentes à abolição da escravatura surge a Igreja negra nos Estados Unidos. Não podemos entender a história dos negros sem fazer referência a Igreja cristã negra. “No princípio era a Igreja negra, e a Igreja negra estava com a comunidade negra, e a Igreja negra era a comunidade negra”, afirma Joseph Washington (1969 apud GIBELLINI, 2012, p.386). A Igreja negra é mais do que uma comunidade religiosa que celebra a liturgia cristã, ela é também local de acolhida, formação de identidade e celebração da vida. Esta forma de celebrar e viver a vida são traços característicos do povo negro. A partir disso, podemos denotar a verdade que
é encontrada nos gritos, nas cantorias, e nos gemidos, quando essas expressões movem o povo para mais perto da fonte do seu ser. O gemido, o grito e as respostas coletivas à oração, ao cântico e ao sermão são projeções artísticas da dor e da alegria experimentadas na luta pela liberdade. São a habilidade do povo negro expressar o lado trágico da existência social, mas são também a sua recusa de serem aprisionados por suas limitações (CONE, 1985, p. 32).
4.2.1 Eixos constitutivos da Igreja negra
O rap dialoga com o pensamento de Cone quando recria, dialeticamente, com suas narrativas, a dualidade do cotidiano. Por isso, confirmamos com o relato musical do grupo Racionais MCs as dualidades entre riqueza e pobreza, esperança e desesperança, sofrimento e alegria, angústia e vida nova, a dificuldade em ser preto e a honra em ser negro.
Histórias, registros,/ Escritos,/ Não é conto,/ Nem fábula,/ Lenda ou mito,/ Não foi sempre dito,/ Que preto não tem vez,/ Então olha o castelo e não,/ Foi você quem fez cuzão,/ Eu sou irmão,/ Dos meus truta de batalha,/ Eu era a carne,/ Agora sou a própria navalha,/ Tim..Tim../ Um brinde pra mim,/ Sou exemplo, de vitórias,/ Trajetos e glórias,/ O dinheiro tira um homem da miséria,/ Mas não pode arrancar,/ De dentro dele,/ A favela,/ São poucos,/ Que entram em campo pra vencer,/ A alma guarda/ O que a mente tenta esquecer,/ Olho pra trás,/ Vejo a estrada que eu trilhei,/ Mó cota,/ Quem teve lado a lado,/ E quem só fico na bota,/ Entre as frases,/ Fases e várias etapas,/ Do quem é quem,/ Dos mano e das mina fraca,/ Rum../ Negro drama de estilo,/ Pra ser,/ E se for,/ Tem que ser,/ Se tremer é milho,/ Entre o gatilho e a tempestade,/ Sempre a provar,/ Que sou homem e não um covarde,/ Que Deus me guarde,/ Pois eu sei,/ Que ele não é neutro,/Vigia os rico,/ Mas ama os que vem do gueto,/ Eu visto preto,/ Por dentro e por fora,/ Guerreiro,/ Poeta entre o tempo e a memória,/ Hora,/ Nessa história,/ Vejo o dólar,/ E vários quilates,/ Falo pro mano,/ Que não morra, e também não mate,/ O tic tac,/ Não espera veja o ponteiro,/ Essa estrada é venenosa,/ E cheia de morteiro,/ Pesadelo,/ Hum,/ É um elogio, /Pra quem vive na guerra,/ A paz/ Nunca existiu,/ No clima quente,/ A minha gente soa frio,/ Tinha um pretinho,/ Seu caderno era um fuzil (BROWN, 2002)
Tendo consciência que Deus não é neutro, como afirma o trecho da música, o potencial discursivo “Capítulo 4 Versículo 3” é creditado pelo viés teológico de James Cone. Ele acredita que a música negra é uma parte inerente ao cerne, a essência da personalidade do sujeito negro. Através da música negra é que a comunidade negra se une e ganha forças na expressão da vivacidade. A música é uma realidade viva na vida do negro de forma social, política e teológica. Com isso, ela é
social, porque é negra e como tal articula a segregação da comunidade dos negros. ‘Ela é rebelião artística contra a desencorajadora ausência de amor da cultura ocidental. A música negra é além disso música política, porque sua recusa dos valores culturais brancos sublinha o político ‘ser diferente’ do povo negro. Por meio do canto, lenta mas firmemente se vai formando uma nova consciência política que se contrapõe antiteticamente ao direito da comunidade branca. A música negra é também música teológica, pois nos fala do Espírito divino que conduz os homens à unidade e à autodeterminação. (WASHINGTON, 1971 apud GIBELLINI, 2012, p. 387).
4.3 Movimentos libertários
Tendo o rap como chave de leitura para um cenário de conflitos étnicos, é de suma importância fazer referência à origem política, social e teológica do rap, relacionada aos movimentos negros libertários e de direitos civis, principalmente na década de 50 e 60 nos Estados Unidos da América. O grupo Racionais MCs faz menção a alguns ícones negros que lutaram contra a segregação racial e também às outras pessoas que são fontes de inspiração para as lutas por paz, justiça e liberdade. Podemos visualizar na música “Jesus Chorou”: “Gente que acredito, gosto e admiro/ Brigava por justiça e paz, levou tiro/ Malcolm X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye/ Che Guevara, 2pac, Bob Marley/ E o evangélico Martin Luther King” (BROWN, 2002). Na concepção do grupo, as pessoas que tentaram mudar radicalmente o mundo para melhor acabaram sendo brutalmente assassinadas, assim foi também com Jesus Cristo, que levou tiro de cruz. Muitos rappers, apesar do envolvimento com o mundo gangster, pregavam a paz em suas letras e foram assassinados. Dentre eles, destacamos o brasileiro Sabotage e os norteamericanos Tupac Shakur, Notorious B.I.G. e Eazy-E.
O gênero musical em questão nasceu de um aglomerado de ideias provenientes dos guetos, movimentos culturais e étnicos, da ascensão tecnológica, mudanças nas tendências da moda e crescimento urbano. Um dos grandes fatores que influenciou o hip-hop foram os movimentos freedom now e black power. O primeiro era de caráter integracionista, reformista e não violento. O grande mentor foi o pastor Martin Luther King. O segundo, promovido por Malcolm X, de cunho revolucionário, separatista e um tanto quanto violento. Por mais que houvesse divergências em suas estratégias, Deus falou pela boca de ambos e os dois se tornaram os maiores nomes da comunidade negra do século XX. Todavia, de forma pacífica ou violenta, a libertação é “um projeto de liberdade em que os oprimidos estão cientes de que sua luta pela liberdade é um direito divino da criação” (CONE, 1985, p.152).
Estes movimentos nasceram em resposta à opressão dos brancos sobre os negros do século XX e são sustentados até os dias atuais, porém, traduzidos nas mais variadas formas. A introdução da música “Capítulo 4 Versículo 3” traz estatísticas da favela brasileira em meados dos anos 90 com o intuito de alertar e combater a mortandade negra e os conflitos étnicos:
“60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais/ Já sofreram violência policial/ A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras/ Nas universidades brasileiras/ Apenas 2 por cento dos alunos são negros/ A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente/ Em São Paulo/ Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente” (BROWN, 1997).
O grupo Racionais MCs é o grande expoente do rap nacional e que por muitas vezes, suas letras estão arraigadas na reconciliação entre brancos e negros. Outras vezes, aparecem com caráter revolucionário, fazendo menções agressivas: “Minha intenção é ruim... esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim... um dois pra atirar/ Eu sou bem pior do que você tá vendo/ O preto aqui não tem dó... é 100 por cento veneno” (BROWN, 1997).
4.4 Nascimento da teologia negra
Em meio ao contexto conturbado de movimentos de cunho social: a segregação racial, sofrimento do negro e a supremacia branca, faz com que nascesse a teologia negra. Conforme Gibellini (2012, p.394), em 13 de junho de 1969, a Conferência dos Teólogos e dos Pregadores Negros, convoca o NBCN, para o Interdenominational Theological Center de Atlanta, emitindo uma declaração sobre a teologia negra. Esta declaração se articula em quatro pontos: a) por que uma teologia negra: a teologia negra não é dadiva do evangelho cristão transmitida aos escravos, mas sim uma apropriação que escravos negros fazem do evangelho que lhes foi transmitido por seus opressores brancos. A teologia negra é o produto da experiência e da reflexão de cristãos negros; b) o que é uma teologia negra: é uma teologia da libertação Negra. A mensagem de libertação é a revelação de Deus tal como ele é revelado na encarnação de Jesus Cristo; c) O que significa a teologia negra: significa que a teologia negra deve confrontar-se com os temas que são uma parte da realidade da opressão negra; d) Qual é o preço: a identificação que deriva do fato de ver Jesus como libertador e o evangelho como liberdade habilita os negros a arriscar a si mesmos pela liberdade e pela fé.
Os guetos negros dialogam na atualidade com os rappers e seu potencial discursivo a partir dos princípios da teologia negra. Esta formulação teológica é possível de ser vivenciada porque ela é baseada nas experiências e na realidade do negro, que está em consonância com os relatos musicais do rap. A música “Genesis”, intro[x] do CD “Sobrevivendo no Inferno”, sintetiza a lógica de Deus descrita na Bíblia e a lógica do homem que tenta sobreviver todos os dias no inferno: "Deus fez o mar, as árvores, as criança, o amor/ O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta/ Eu?! Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta. /Eu tô tentando sobreviver no inferno" (BROWN, 1997). A música em questão vai do paraíso ao inferno em poucas palavras. O sujeito precisa sobreviver em meio a um mundo de caos, onde a sua fé é transcrita numa “bíblia véia” e uma pistola automática. Por isso, que
o guerreiro de fé nunca gela/ Não agrada o injusto, e não amarela/O Rei dos reis, foi traído, e sangrou nessa terra/ Mas morrer como um homem é o prêmio da guerra/ Mas ó, conforme for, se precisa, afoga no próprio sangue, assim será/ Nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue/ Entre o corte da espada e o perfume da rosa/ Sem menção honrosa, sem massagem. A vida é loka, nêgo/ E nela eu tô só de passagem (BROWN, 2002).
A teologia negra é uma proposta de libertação física, vivencial e espiritual para o povo negro. Através de um estudo histórico-crítico, chegamos ao cerne do problema que os rappers tentam resolver. Os rappers não possuem um estudo teórico sistematizado da teologia negra, porém as vivências cotidianas são traduzidas em suas rimas. Conforme Takahashi (2014, p.60), “não há a utilização de escrituras, sua narrativa descreve tão somente caminhos para o ouvinte seguir; chega a induzir, mas nunca prescrever. A teologia é o campo erudito do estudo da religião, e os rappers não se apresentam como expert nas doutrinas pentecostais. Suas narrativas apenas dialogariam com o saber teológico”.
4.5 As várias faces do Messias Negro
Para o pensamento teológico pouco importa se Jesus era branco de olhos azuis ou pardos de olhos escuros. O importante é conhecermos o Jesus histórico, mas também não podemos nos desvencilhar do Jesus, o Cristo. Conforme Reza Aslan (2013, p.23) “o grande teólogo Rudolf Bultmann gostava de dizer que a busca pelo Jesus histórico é, no fim das contas, uma busca interna. Os estudiosos tendem a ver o Jesus que eles querem ver. Muitas vezes eles veem a si próprios, seu próprio reflexo na imagem que construíram de Jesus”. Dentro dessa perspectiva, Jesus “é negro porque foi um judeu. A afirmação do Cristo Negro pode ser compreendida quando o significado de sua passada condição de judeu é relacionado dialeticamente com o significado de sua atual negritude” (CONE, 1985, p. 148).
O entendimento de Bultmann análogo com o de Cone pode ser interpretado com base em dois aspectos: a) as várias faces de Jesus e suas determinadas características específicas; b) a situação dos negros na atualidade. O Jesus negro é representado a partir de características singulares da história do povo negro. Diante disso, é o servo sofredor (Is 52, 13-53.12); o flagelado (Lc 23, 1-25); o que caminhou até o calvário (Lc 23, 26-32); o que foi crucificado (Lc 23, 33-49). O negro sofreu na escravidão, assim como Jesus sofreu no Calvário. Jesus conhece o sofrimento negro. Os rappers conhecem o sofrimento – material, espiritual e interno - dos habitantes da favela.
No Brooklin lembrei sim, foram várias leis, e o veneno, sofrimento passado ali dentro/ Por ali tudo mudou, mas eu não posso moscar/ O que é aquilo? Lá vem tiro, é os pilantra se pá/ Submundo do subúrbio faz vítima em tudo/ Fuzil na mão dominado mão alguém gritou sujou/ Nessas horas amarelou merece uma pá de soco/ Por dar brecha, deixar guela ou morar na favela/ Uh! AH! Espera ai o Helião citou o cicatriz/ Irmãozinho na moral na humilde age no crime/ Dando escassez querem rir do meu fim pode vir, não vou fugir estou aqui sou assim, por que não? (SABOTAGE, 2001).
A concretude