Implicações conceituais da pesquisa sociológica
Ao escolhermos um objeto de pesquisa dentro do campo sociológico, nos deparamos com o dilema presente entre as ciências sociais, referente ao rigor metodológico que irá conferir o caráter científico da pesquisa. Nesse sentido, o texto de Jean Claude Passeron (1995) “O Raciocínio Sociológico, o espaço não- popperiano do raciocínio natural” traz elementos a serem problematizados ao se pensar as imbricações da pesquisa nas “ciências históricas” como ele caracteriza a antropologia, a história e a sociologia.
Fazendo uma crítica à concepção popperiana de ciência, baseada nos preceitos empíricos muito próximos das ciências naturais, buscando leis de explicações dos fenômenos, baseadas na refutabilidade e falsiabilidade, Passeron se posiciona contrário a essa visão nomológica de ciência. O distanciamento do pensamento do autor a ciência popperiana se evidencia ao colocar a metáfora das ciências e metodologias ditas “moles” e “duras”, aonde entende-se que a dureza de uma ciência seria medida “em função do aumento das restrições formais do raciocínio” (p.14). A questão colocada por Passeron aqui é a clareza de que as ciências naturais e humanas se constroem por mecanismos distintos, com metodologias específicas e que a comparação entre ambas e a transposição de métodos para que se confira um status de ciência não é aplicável. Justifica dizendo que
“o lugar em que o raciocínio sociológico constrói suas pressuposições é diferente do espaço lógico experimental ou do formalismo, especialmente no raciocínio natural, desde que se submeta a formas específicas de controle metodológico” (1995,p.14).
A partir disso, o autor nos apresenta outro dilema: o da indistinção entre sociologia, antropologia e história, as quais ele caracteriza como ciências históricas. Ora, se essas ciências têm suas premissas a partir de um mesmo objeto, definindo, de forma simplista, sociologia como o estudo do homem na sociedade, antropologia o estudo do homem e sua cultura e história o estudo do homem no tempo e no espaço, o que vai diferenciar a pesquisa em ambas é justamente a metodologia aplicada e o aparato conceitual de cada uma.
Assim, chegamos à discussão principal do texto e mais significativa para a constituição do raciocínio sociológico: os conceitos. O subtítulo do segundo capítulo “um léxico inviável” (p.35) já apresenta a priori a discussão sobre a aplicação dos conceitos na sociologia. É inviável se pensar em um acúmulo de conhecimento, uma vez que não há um consenso conceitual entre os autores. Diferente das ciências naturais, para as quais, determinados conceitos refletiam paradigmas científicos, nas ciências humanas, especificamente, na sociologia isso não ocorre. A heterogeneidade de conceitos entre as correntes teóricas determina a impossibilidade de paradigmas.
Sendo assim, os conceitos sociológicos sofrem de limitação de sentido e público (p.38) não conferindo durabilidade de aplicação, estando restritos ao campo/escola teórico(a) que o definiu. Diante dessa “anomia conceitual” (p.39) o raciocínio sociológico vai se manifestar “através de uma ampla gama de hábitos metodológicos e habilidades técnicas” (p.39). Dessa forma, a “sociologia é ao mesmo tempo um conjunto sequencial de conhecimentos e um conjunto retalhado de raciocínios” (p.40).
Chegamos então ao enunciado dessa questão sobre a definição da categorização dos conceitos sociológicos, que por um lado apresentam-se gerais em demasiado, considerados polimorfos ou polissêmicos, ou são específicos demais, chamados estenográficos.
Conceitos Polimórfos: esses conceitos polissêmicos são compreendidos pela sua definição generalista de sentido. Passeron (1995) ao apresentar as limitações de sua utilização chama atenção para a “multiplicidade dos empregos descritivos que marcam a história dos mais eficazes ou mais gerais entre eles” (p.43). Em suma, a expressão “nevoeiro semântico” (p.49) utilizada pelo autor apresenta a definição ou a indefinição desses conceitos, os quais, uma única palavra pode apresentar diversos sentidos conceituais baseados em sua inteligibilidade e utilização histórica por autores e escolas teóricas. Ao dizer que existe uma “memória conceitual” (p.49), o autor afirma que “os conceitos sociológicos exigem um conhecimento do seu passado” (p.49). Por exemplo, ele cita o conceito de “classe” que tem um significado conceitual para a aplicação em Marx diferente da aplicação atual, ou de outros autores contemporâneos a ele. Como os autores não se utilizavam dos conceitos uns dos outros, utilizar o conceito de classe é remetê-lo a definição de Marx, porém a aplicação desse conceito em determinadas situações é anacrônico ou com sentido distinto. Em outras palavras, na história dizemos que há uma “historicidade” nos conceitos, pois dependendo do contexto em que está inserido terá sentidos diversos, por exemplo, o conceito de escravidão correspondia a determinadas características na Roma antiga que se distinguia da aplicação do conceito na Grécia, ou a escravidão que existe no Brasil hoje não ocorre dentro do mesmo sentido e com as mesmas condições da escravidão do africano até o século XVII. Em sociologia isso é mais complicado, pois os conceitos além de terem diferença de sentido entre as ciências históricas (antropologia, sociologia e história) tem a diferença de sentido entre os autores sociólogos. Em suma, uma única palavra quando aplicada como um conceito sociológico terá variação semântica.
Conceitos estenográficos: se os conceitos polimorfos são limitados por serem gerais demais, os conceitos estenográficos sofrem das mesmas limitações no sentido inverso, são específicos de mais ou com limitada aplicação a pesquisa científica. Passeron (1995) define esses conceitos como palavras que não se refletem determinantes para a pesquisa, mas como um recurso operatório, pois “não pertencem propriamente a sociologia, mas ao vocabulário das comunicações sociais do sociólogo” (p.56). Na sequencia de seu raciocínio, o autor coloca os conceitos estenográficos como “pré-construções de uma sociologia espontânea” sendo a pesquisa científica justamente a coleta de dados para se romper com essa sociologia espontânea. Os conceitos estenográficos teriam a função especializada “de resumir uma análise sociológica capaz de imediatamente mobilizar os dados- estatísticos, etnográficos ou históricos” (p.58). Os exemplos citados são “crime de colarinho branco”, “cristalização”, “grupos de referência”, ou seja, conceitos que tem seu sentido limitado a sua aplicação na pesquisa, não transcendendo seu sentido a alcances mais gerais como os conceitos polimorfos.
Ao encontro desse pensamento, Boudieu (1994) em “El oficio de sociólogo”, ao discutir a construção do objeto de pesquisa, faz a relação entre a sociologia científica e a sociologia espontânea, entendida como saber espontâneo o senso comum, dizendo que o que vai caracterizar um trabalho científico é a abdicação de nossas pré noções em detrimento de uma linguagem conceitual argumentativa que vai qualificar a pesquisa. Ou seja, no decorrer da pesquisa, o pesquisador deve tomar cuidado não somente em romper com suas pré-noções como também estar atento para não absorver as pré-noções de seus objetos ou sujeitos informantes. Sobretudo, a pesquisa torna-se científica pela distinção entre problema social e problema sociológico, sendo o segundo a base de uma pesquisa científica sociológica.
Também, a construção de um problema sociológico passa pela definição dos conceitos a serem utilizados, lembrando do caráter da memória histórica dos conceitos e de seus sentidos polimorfos e estenográficos. Utilizando uma pesquisa como exemplo, abordarei a pesquisa realizada entre os anos 2009 e 2011 acerca do adoecimento mental de professoras da rede pública estadual de Santa Maria-RS, que culminou em um artigo monográfico para a Especialização em História do Brasil, curso ofertado pela Universidade Federal de Santa Maria. A pesquisa realizada utilizou os dados de afastamentos por motivos de saúde mental como referência a compreender esse fenômeno, seja por motivos de um esgotamento psicológico dessas profissionais, seja como uma estratégia de resistência a um modelo profissional não satisfatório, o problema de pesquisa sugerido foi: “Como as experiências de afastamentos são representadas pelas professoras em suas trajetórias docentes?”
Nesse sentido, foi preciso definir os conceitos utilizados nesse problema e quais seriam considerados polimorfos e quais estenográficos. A seguir, os conceitos principais e secundários utilizados serão dispostos a fim de tentar enquadrá-los em polissêmicos ou estenográfico.
Conceito de experiência: esse conceito aparece de forma polimorfa, pois tem diversas aplicações semânticas, não apenas nas ciências humanas, como nas ciências naturais. O sentido buscado por esse conceito nessa pesquisa faz menção aos preceitos de Francois Dubet, sobre a “experiência social”, passando assim a redefinição de sua abordagem a uma aplicação específica, ou seja: experiência social aplicada dentro da visão desse autor torna-se limitada ao campo e a ação do pensamento do autor. Subtraindo elementos tanto de Weber como de Simmel, Dubet elabora esse conceito como uma ferramenta a dar sentido às práticas sociais. Como objeto sociológico ele afirma que
A sociologia da experiência social visa definir a experiência como uma combinatória de lógicas de ação que vinculam o ator a cada uma das dimensões de um sistema. O ator deve articular estas lógicas de ação diferentes e a dinâmica que resulta desta atividade constitui a subjetividade do ator e sua reflexibilidade (DUBET, 1994, p. 105)
Assim, a utilização desse conceito vem ao encontro de abarcar uma gama de hipóteses de diferentes motivações que poderiam levar à professora a solicitação de afastamento, que aparece no problema não como um conceito principal, mas operacional de uma categoria empírica a ser analisado. Como a professora vai caracterizar essa experiência vinculando suas motivações a sua história de vida e trajetória profissional é o traz relevância a esse conceito na pesquisa.
Da mesma forma, dentro dessa experiência relatada pela professora, irá se pensar também o conceito de Michel Foucault de “relações de poder”, uma abordagem estenográfica para definir o poder como um instrumento de diálogo entre os indivíduos, compreendendo as negociações de poder entre professoras estudantes, direção da escola que ocorrem antes, durante e após o período de afastamento, bem como as relações que operam entre o cotidiano escolar que podem inferir causas ao desgaste da ação profissional das professoras.
O conceito de representação: aqui a utilização desse conceito polimorfo tem o objetivo de compreender qual é o valor simbólico dado pelas professoras à experiência do afastamento. Em que momento de sua trajetória docente ela julgou necessária essa experiência? Em que contexto de sua vida o afastamento surgiu como uma opção? Assim, embora tenha sido Durkheim a introduzir o conceito de representações individuais e coletivas, a abordagem desse conceito para essa pesquisa se enquadra dentro da perspectiva de Pierre Boudieu que entende que as representações se materializam nas práticas sociais e nas Instituições. Assim, será necessário associar o seu conceito de hábitus (polimórfo, pois outros autores utilizaram esse conceito, porém podemos dizer que hábitus esta para Bourdie assim como classe social esta Marx) para compreender a ideia de representação social dentro campo simbólico apresentado por esse autor. Pois o conceito de hábitus permite a reflexão sobre a relação do individuo e sociedade, conciliando as oposições entre o mundo objetivo e a realidade exterior com o mundo subjetivo das individualidades e a realidade individual.
O conceito de Trajetória: o conceito polissêmico de trajetória aqui utilizado também vem da proposta teórica de Pierre Bourdie, mais especificamente, por esse conceito estabelecer relação entre o habitus e seus agentes sociais. Ou seja, a definição de trajetória é “uma série das posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos”(Bourdieu, 1996). Aqui a especificidade é tratar de uma trajetória docente dentro do campo escolar ou educacional, introduzindo também aqui o conceito de Campo do mesmo autor. Utilizar o conceito de trajetória docente (estenográfico) vem ao encontro de propiciar um espaço para as professoras refletirem sobre suas escolhas no âmbito da licenciatura e sua atuação no mercado de trabalho, podendo refletir na análise de sua inserção no campo escolar e as trocas e negociações que realizam com demais professores, funcionários e gestores dessa instituição. Da mesma maneira, através do discurso de sua trajetória poderá se identificar a ação de políticas públicas agindo sobre a sua autonomia enquanto docente, mostrando que essas micro relações de poder se operam em diferentes níveis no ambiente escolar. Ainda, é um recurso a ser utilizado como estratégia para compreender as causas e o impacto desses afastamentos na rotina escolar e na vida pessoal e profissional das professoras.
Os conceitos de campo e hábitos citados aqui foram desenvolvidos superficialmente em virtude de que merecem um estudo maior para sua utilização. Contudo, estando os conceitos de hábitus, campo, trajetória interligados, foi necessária sua citação. Em suma, o pretendeu-se identificar aqui foram as motivações desses afastamentos, as condições de negociação que operaram nesses processos que envolvem, além da gestão administrativa e burocrática da escola, uma perícia médica que transcende os limites da escola, chegando a Coordenadoria de Educação e Secretaria Estadual de Educação. Da mesma forma, como e, se esses afastamentos refletem de alguma forma na prática pedagógica dessas docentes e “ato do cuidado de si”. Isso, em função de se pensar que a estrutura de relações de poder da escola, sofrem poucas ou nenhuma mudança significativa durante o período de afastamento. Se é um espaço de adoecimento, o afastamento e o tratamento, teoricamente, deveriam dar condições de enfrentamento dessa realidade no retorno a atividade docente. Se não houver uma mudança percebida pela professora sobre as percepções de sua ação social enquanto docente refletidas em sua trajetória docente, pode ser um indício de que o tratamento é negligenciado, ou de que o afastamento derivou de outras condições que não necessariamente um adoecimento. São hipóteses que surgiram durante a pesquisa.
Tentou-se aqui de forma objetiva desenvolver o pensamento de Passeron, fazendo relação de suas colocações com um projeto de pesquisa. Assim, inicialmente podemos supor que os conceitos polissêmicos apresentam-se com maior abrangência, em uma pesquisa, uma vez que os estenográficos surgirão com melhor clareza a partir da pesquisa de campo, dos dados coletados, do referencial teórico utilizado, o que pode surtir mudanças significativas na pesquisa e nos conceitos.
Referências:
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
_______________. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009
BOURDIEU, Pierre. CHAMBOREDON, Jean-Claude. PASSERON, Jean-Claude. El Oficio de sociólogo. Espanha: século XXI sa, 1994.
PASSERON, Jean-Calude. O Raciocínio Sociológico, o espaço não-popperino do raciocínio natural. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
WAUTIER, Anne Marie. Para uma sociologia da experiência, uma leitura contemporânea: Francois Dubet. In: sociologias, POA, ano 5, nº9, 2003, p.174-214. Disponível http://www.scielo.br/pdf/soc/n9/n9a07.pdf