28/06/2019

Honra e vergonha: a linguagem cinematográfica e sua representação

É possível representar o conceito de honra? Como já dito por Rodhen (2006),  analisar a produção sobre esse conceito, traz a discussão sobre a complexidade do tema. Mais do que um conjunto de ações de demonstração de poder, prestígio e comportamentos, honra é também demonstrada como um conjunto de sentimentos simbólicos a respeito do prestígio, ou desprestígio que determinadas condutas sociais apresentam.

Enfim, os principais autores sobre esse tema como Peristiany (1965), Pitti- Rivers (1971), Almeida (1995), entre outros, embora tenham algumas limitações em suas pesquisas, abordam esse tema pelo viés de uma honra hegemônica, como um conjunto de práticas de diferenciam determinadas pessoas das outras, ou pelo ofício desempenhado, pela experiência, poder ou status demonstrado em determinadas sociedades.

Peristiany (1965), ao inaugurar os estudos de honra, problematiza também a relacionalidade dos estudos de gênero, que surgiram dos estudos feministas, mais voltados para as questões da mulher e da sexualidade, deixando de lado, num primeiro momento, questões de masculinidades e honra. Dessa forma, os autores que desenvolvem o tema de masculinidades e honra transcendem as discussões de sua época, voltando-se não para uma análise de patriarcado ou machismo, mas problematizando como as masculinidades e a representação da honra masculina são culturalmente construídas.

Assim, a proposta desse trabalho de analisar duas produções cinematográficas, os filmes, Gladiador (2000) e Macunaíma (1969), inserem as discussões do tema de honra e masculinidades de maneiras distintas. O primeiro representa o conceito de honra hegemônica, discutida nos textos que abordam a região do mediterrâneo, o segundo é exatamente o oposto, trazendo a figura de um homem sem escrúpulos que busca atingir apenas a satisfação pessoal, egoísta, traiçoeiro e desonroso.

O filme Gladiador[1] (2000), cujo a direção é de Ridley Scott,  traz a história do general Maximus, interpretado por Russell Crowe. Fiel ao imperador romano Marco Aurélio (Richard Harris), Maximus ao liderar seu exército, conquista o território germano para seu imperador, último local de atrito com o César. Com coragem e honra reconhecida pelos soldados, Maximus é também reconhecido pelo próprio César como um filho, e a ele decide deixar o comando de Roma, a fim de que se reestabeleça a República como modelo político. Contudo, o filho de Marco Aurélio, Cômodos (Joaquin Phoenix), desprovido das características necessárias para governar, como coragem em batalha, empatia e honra, ao saber dos planos do pai, assassina o César e toma o poder. Maximus desconfiado da ação de Cômodos, nega sua fidelidade ao novo imperador e esse ordena a morte do general e manda exterminar sua família.

Maximus com bravura vence os soldados pretorianos que deveriam assassiná-lo e parte para sua casa, quando descobre que sua família também foi assassinada. Assim, é recolhido como escravo e vendido á Próximo (Oliver Reed), um treinador de gladiadores. Num primeiro momento, acredita-se que Maximus seria um desertor do exército romano, devido a sua marca da legião, e devido ao seu desempenho, ganha o público que passa a chama-lo de “espanhol”. Sua fama chega até Roma, momento em que os gladiadores de Próximo são convocados a lutar no Coliseu. Assim, o general terá a oportunidade de vingar sua honra e enfrentar Cômodos através da luta Gladiadores.

No Coliseu, Cômodos apresenta sua política de “pão e circo” aos romanos e coloca desafios invencíveis aos gladiadores. Esses, sob o comando de Maximus, organizam-se de forma a vencer os obstáculos propostos, saindo pela primeira vez vencedores no Coliseu. O Espanhol ganha carisma do público. Ao ficar frente a frente com o imperador, é obrigado a revelar sua verdadeira identidade, causando um grande transtorno ao imperador, que se vê diante de uma situação delicada, deseja a morte de Maximus, mas devido a sua honra e prestígio com o povo romano, não pode obtê-la por meios internos, restando apenas lançar desafios mais perigosos, como leões e campeões invictos.

Ainda assim, Maximus sai vitorioso e arquiteta junto ao Senado um plano para tomar o poder de Cômodos. Em sua última batalha, o próprio imperador desafia o gladiador para uma luta, mas antes certifica-se de que seu oponente estará ferido e em condições inferiores as suas na luta. Mesmo ferido, o Gladiador cumpre a sua promessa de vingar a morte de sua família e de Marco Aurélio, fazendo valer seu último desejo, entregando Roma ao povo novamente.

Em suma, a história apresentada nesse filme tem seu enfoque mais no conceito de honra e como ela é sentida não somente por aquele que é honrado, como também por aqueles que lhe dão prestígio. Dentro das discussões de Peristiany e Pitti-Rivers(1971), que analisam a região do mediterrâneo, embora lembrem que o conceito de honra está em constante construção e que mesmo na região mediterrânea não se pode pensar de forma homogênea, devido a variabilidade cultural dessa região, a performance de Máximus evidencia esse homem honrado e uma masculinidade hegemônica, dentro da perspectiva de Kimmel (1998). Não se percebe de forma clara seu par, a vergonha, pois dentro da análise desses autores e de Rodhen (2006) a honra seria manifestada pelo homem e a vergonha pela mulher, através do zelo de sua sexualidade, valorização da virgindade e perpetuação da família.

Nesse filme, a valorização da família sempre é mostrada pelo personagem principal ao início de cada luta, momento em que ele faz uma prece, objetivando a vitória a fim de reencontrar sua família. Contudo, os valores que definem honra estão presentes em todos os instantes do filme. No início, ao liderar seu exército, seu discurso encoraja os soldados a lutarem com bravura e fidelidade ao César, dessa forma, mesmo que venham a morrer em batalha, devido a sua honra, estariam destinados aos lugares privilegiados junto a Deus. Esse momento faz menção aos estudos de Bourdieu (1992) que relaciona honra com o sagrado e todas as questões simbólicas rituais que caracterizam a honra. O ritual mostrado no filme de lavar as mãos com a terra, fazer a oração frente aos bonecos que representam sua família e o discurso que precedem o combate, podem ser relacionados com essa visão de honra e sagrado.

 A honra não é atributo apenas do personagem principal, mas também dos demais escravos gladiadores, que antes de suas lutas são encorajados a lutar com bravura e morrer com honra, ou seja, não se deixar sucumbir ao medo da morte e não fugir dos desafios. Nesse sentido, dentro da perspectiva apresentada por  Rodhen (2006) sobre o pensamento de Pitti-Rivers (1971), vemos tantos aspectos do que ele determinou: “honra como atributo individual” (p.105), sendo o sentimento de valorização de suas condutas, como o orgulho pessoal e o direito de defesa de seu orgulho e sua honra, como também “Honra em relação a solidariedades sociais” (p.106), quando grupo de indivíduos compartilham uma honra coletiva, baseada na honra individual de cada membro. É o caso tanto dos soldados sob o comando do general, como também da relação de respeito e prestígio entre os escravos gladiadores.

Outro elemento apresentado pelo filme e que pode servir para pensar questões de honra é a relação do general com o Marco Aurélio. Uma relação amistosa e muito próxima a ponto de ser considerado filho pelo César. Nessa relação, podemos analisar alguns aspectos. Primeiro, ao longo do filme, embora não fique claro, fica subentendido que houve uma relação amorosa entre o general e a filha do imperador. Contudo, devido à política de casamentos da época e a valorização das tradições, ao que tudo indica, a filha do imperador passou pelo processo de casamento arranjado, havendo uma ruptura no relacionamento com o general. Mas, devido a sua fidelidade e honra, o general mesmo não tendo o poder e a nobreza, adquiriu status diante do imperador que passou a ver nele qualidades necessárias para que seus desejos pós morte fossem cumpridos.

Nesse sentido, o texto de Almeida (1995), ao analisar a região de Pardal e a relação hierárquica de trabalho nas minas de mármore, mostra que entre os trabalhadores da mina o critério de diferenciação mais significativo é a experiência e é isso que vai dar status entre os trabalhadores, que dividem-se em aprendizes, cabouqueiros, mestres e contra mestres. A experiência, o respeito e a boa conduta familiar, ou seja, se o homem é um bom marido, bom pai, se é um exemplo aos demais, ele adquire status entre os trabalhadores e é ouvido por todos. Assim, se transpormos essa manifestação de honra para o filme em questão, podermos inferir que ao ser um general dedicado, fiel, corajoso que venceu todas as batalhas que liderou, adquiriu confiança e respeito não só dos demais soldados, mas do próprio imperador.

Diferente de Maximus, o filho do César, Cômodos era desprovido das qualidades cultivadas pelo general. Embora soubesse lutar, nunca se encorajou a entrar em campo de batalha, era ambicioso e com pouca empatia. O próprio Marco Aurélio, chegou a comentar que se pudesse passar o cargo á sua filha passaria, pois,  ela sim seria uma sucessora a sua altura,  tinha garra, determinação e discernimento necessários ao cargo, além de compartilhar de honra, no seu caso, ser uma boa representante da vergonha.

Cômodos,  no momento que soube que não seria imperador disse ao pai que certa vez lhe foi dito que eram necessários quatro principais virtudes para ser um imperador: sabedoria, justiça, firmeza e temperança e que ele não dispunha de nenhuma. Porém as outras virtudes que tinha não eram apreciadas pelo pai, como ambição. Dessa forma, ele assassinou o pai e tomou o poder de forma legítima, uma vez que não havia sido anunciado a decisão do César a ninguém. Como suas decisões como governante eram apenas para satisfazer suas vontades individuais e caprichos de nobreza, seu personagem é apresentado como desonroso no decorrer do filme e o grande vilão da história.

Já, outra obra cinematográfica vai trazer a tona o oposto do conceito de honra, a desonra e a desgraça. Diferente do filme Gladiador, que tem pressupostos da cultura mediterrânea, Macunaíma[2] (1969), o premiado filme brasileiro, inova o cinema em nosso país ao retratar com grande propriedade a obra de Mario de Andrade, que tenta por meio cômico desmistificar a ideia de uma identidade brasileira, mostrando a diversidade de papeis e realidades presentes em nosso país.  Assim como Rodhen (2006) apontou, os autores que estudaram a região do mediterrâneo trouxeram grandes contribuições aos estudos de honra, porém, devemos sempre compreender que são estudos particulares e que não representam, por exemplo, a cultura de honra presente no Brasil. Dessa forma, o filme Macunaíma, de direção de Joaquim Pedro de Andrade, traz como protagonista o oposto da honra mediterrânea. É um personagem preguiçoso, traiçoeiro e egoísta, desprovido das virtudes que caracterizam um homem honrado.

O filme, inicia sua abordagem com o nascimento de Macunaíma( grande Otelo e Paulo José) que já nasceu grande e negro, retratando as dificuldades da vida na mata. Macunaíma de tão preguiçoso, só vai falar aos seis anos de idade e vive junto de sua mãe e dos dois irmãos, sendo um casado. Conforme vai crescendo, passa os dias deitado na rede ou brincando, enquanto os irmãos trabalham. O fato dele ser preguiçoso vem justamente de encontro com o valor que o povo brasileiro dá ao trabalho, rompendo essa identidade.

Uma cena que caracteriza fortemente a maldade e egoísmo de Macunaíma é o momento em que uma enchente deixa sua família desabrigada e com escassez de comida. Enquanto os irmãos tentam pescar e procuram por comida para todos, Macunaíma encontra varias frutas e as mantém escondidas da família. Quando percebe que  sua mãe está quase delirando de fome, a leva até o local e mostra o que estava escondendo, a mãe prontamente tenta juntar as frutas para levar aos demais e assim, Macunaíma leva a mãe embora sem dar-lhe o que comer. Em virtude disso, ela leva o filho para bem longe como forma de castigo. Após passar por algumas aventuras, ele volta pra casa, no momento em que sua mãe falece, logo, ele e os irmãos partem para a cidade em busca de aventuras.

Outra cena que deixa explícito a questão do preconceito no Brasil, é o momento em que eles se deparam no caminho com uma espécie de fonte mágica, a qual, Macunaíma toma banho e de negro passa a ser branco e em alto e bom tom grita “estou bonito”, como se ser branco fosse sinônimo de ser belo, da mesma forma que sendo branco teria mais oportunidades na vida. Chegando na cidade, ele vive inúmeras aventuras, mantendo relações com prostitutas e uma guerrilheira, sempre mostrando suas características de preguiçoso. Quando a vida na cidade deixa de ser oportuna, ele e os irmãos retornam para a Mata em sua casa antiga. Porém, a procura por comida é intensa e as condições da casa são insalubres. Enquanto os irmãos tentam encontrar comida, Macunaíma permanece na rede e sempre inventando desculpas e histórias para justificar sua preguiça. No fim, os irmãos se cansam do egoísmo de Macunaíma e partem sem ele, com fome e sem casa, Macunaíma perde a vida ao cair nos encantos de um ser das águas, momento em que é devorado.

O filme todo demonstra características de uma pessoa individualista, oportunista e mentirosa, elementos esse que podem ser visto como o oposto da honra. Da mesma forma, o conceito de vergonha, o qual os estudos no mediterrâneo direcionam para a mulher, estão deslocados nesse filme. Não apenas o personagem de Macunaíma é desonroso, como também as mulheres com as quais se relaciona são sem vergonha, com um apetite sexual fora do comum e nenhuma preocupação com reputação.

Tudo o que abordado no filme brasileiro é o oposto do que vemos no Gladiador. Mesmo o texto de Fonseca (2000), que retrata uma realidade brasileira, dentro da particularidade de uma região de periferia de Porto Alegre, retrata a honra como presente entre os grupos populares. O comportamento de Macunaíma foge a qualquer virtude elencada como traços de honra. Não existem trocas simbólicas, preocupação com prestígio social, com família, com trabalho. Sua realidade difere tanto da nobreza do mediterrâneo, quanto dos grupos populares brasileiros. E o seu modelo de masculinidade pode ser entendida como subalterna.

Referências

ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim do Século, 1995.

FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000.

PERISTIANY, Jonh. G. (org). Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971 (1965)

RODHEN, Fabíola. Para que serve o conceito de honra ainda hoje?. Campos- revista de antropologia Visual, vol 7. Nº2, 2006

KIMMEL, Michel. A produção simultânea de masculinidade hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos. V. 4, nº 12, 1988.

Baixar artigo

Autores

  • PEIXOTO, Priscila dos S.;

Áreas do conhecimento

  • Nenhuma cadastrada

Palavras chave

  • Gênero; Cinema; Antropologia

Dados da publicação

  • Data: 28/06/2019
Assine

Assine gratuitamente nossa revista e receba por email as novidades semanais.

×
Assine

Está com alguma dúvida? Quer fazer alguma sugestão para nós? Então, fale conosco pelo formulário abaixo.

×